Nunca gostei de andar de ônibus, confesso. A impressão que tenho é de que ninguém em sã consciência gosta. Se você curte, me desculpe, mas eu não. Transporte público hoje em dia é questão de necessidade, mas mais do que isso, é uma típica aventura com fragmentos de terror, drama e suspense. Trinta minutos dentro de um ônibus sucateado, rodando a cidade em alta velocidade e com várias coisas acontecendo em um curto espaço de tempo, não dariam um belíssimo longa filmado em plano sequência? Eu acho e vou te explicar o porquê.
Andando de ônibus você encontra de tudo: vendedores de picolé, doce, água e banana frita. Estudantes, trabalhadores, velhos, jovens e crianças. Filas nas paradas, pessoas cansadas, aglomeradas, cruzando os dedos para que o motorista acelere e chegue o mais rápido possível em seus respectivos destinos. Isso se o ônibus não pregar no meio do caminho, é claro. Há mais de um mês essa rotina tão única pra quem é usuário de transporte público não é mais a mesma. Você sente falta? Eu não.
Para a minha sorte, já não estava andando de ônibus com muita frequência antes da pandemia. A ocasião que ainda me fazia usar esse transporte era ir da faculdade para a minha casa e às vezes, vice-versa. Fazendo esse percurso que durava aproximadamente de 40 a 50 minutos, já vi tantas coisas. Dormi demais e passei do ponto, peguei linha errada, me perdi, troquei olhares com homens que quando desceram do ônibus eu nunca mais vi e conheci pessoas com quem falo até hoje. Assaltada? Fui duas vezes. Furtada também. Já comprei balinhas de mangarataia pra tirar o famigerado "ram ram" da garganta e já vi gente fingindo que estava dormindo pra não ceder lugar. Aqui tem história!
Quando eu estava indo para casa e tinha a oportunidade de achar um lugar vazio para sentar... era uma benção. Às vezes eu lia um pouco, outras eu cochilava, mas sempre reparava nas pessoas que estavam no ponto esperando e nas que entravam pela porta e passavam pela catraca. A aparência do usuário de transporte público é padrão: cabelos assanhados, suor excessivo e roupas amassadas. Se você não entra dessa forma dentro de algum ônibus, provavelmente é assim que você vai sair.
Sempre que o busão parava em algum terminal era uma angústia. Olhando pela janela, parecia que a porta do ônibus era o mar vermelho se abrindo e as pessoas eram os hebreus tentando passar antes que o mar, ou melhor, a porta se fechasse. Tapas, empurrões, gritos. "Eu sentei primeiro!", "Cuidado, tem criança aquiiiiii!", "Abre no meio, motora!". Céus! O ônibus chacoalhava enquanto as pessoas entravam e eu também via angústia nos rostos do cobrador e do motorista. O cobrador dava um gole na sua água, respirava fundo e o motorista passava um lencinho na cabeça, secando o suor. Quando dava a partida, ainda dentro do terminal, o ônibus rangia, balançava e parecia que não sairia do lugar. A torcida era para que se ele fosse dar prego, que desse ali mesmo. Você sente falta disso? Eu não.
Havia uma senhorinha com gesso no braço que sempre pegava aquele mesmo ônibus, no mesmo horário e eu sempre cedia meu lugar pra ela. Estando de pé, esmagada pelos outros e sem lugar até pra me segurar, eu me sentia presa numa lata de sardinha. Do lado de fora, pessoas se amontoavam e se preparavam para a guerra que aconteceria na porta do próximo ônibus que vinha atrás do meu. Eu presenciava isso por 20 minutos, três dias por semana, contabilizando uma hora de perrengue por semana e mesmo assim eu já não aguentava. Me dói pensar que milhares de pessoas passam por isso três vezes ao dia, sete dias por semana e 30 dias por mês porque não têm outra opção. Uber, carro particular, táxi, moto... para eles é lenda urbana.
Se há alguns meses você me dissesse que não veríamos mais os ônibus, os terminais e as paradas lotados de gente, eu jamais acreditaria. Provavelmente ficaria feliz, mas seria difícil assimilar a possibilidade de não existir mais superlotação nos transportes e a não existência de pessoas se engalfinhando por um lugar vazio na janela. Convenhamos que uma das maiores interações sociais que o brasileiro tem é andar de transporte coletivo e a pandemia do coronavírus também tirou isso da gente. Que bom! Você sente falta? Eu não.
Sabendo da limitação de pessoas dentro dos transportes atualmente e lembrando de como a situação costumava ser há alguns meses, me pego pensando: será que as pessoas que ainda precisam andar de ônibus estão se sentindo mais confortáveis dentro dos coletivos, mesmo com tudo que está acontecendo? Não falo de segurança porque ninguém está seguro, falo de comodidade. Bruno, meu amigo enfermeiro que ainda está trabalhando, não fala por todos, mas me contou que está mais tranquilo. Eu, usufruindo do privilégio de não precisar mais andar de ônibus, não sinto a menor falta.
Não sinto falta da superlotação, não sinto falta de sentir o ônibus tremer de tão sucateado que está, nem de achar que os vidros da janela vão quebrar a qualquer momento porque os pregos estão frouxos. Não sinto falta dos assédios, nem das pessoas inconvenientes. Não sinto falta de ser assaltada, nem de pagar uma taxa cara por um transporte desconfortável. Não sinto falta de olhar pela janela e ver pessoas se estapeando todos os dias para conseguir entrar no ônibus, com medo de se atrasarem para o trabalho, a faculdade ou a escola. Mas e quem, assim como eu, também não sente falta, mas não tem escolha e vai precisar voltar a pegar ônibus superlotados novamente?
Infelizmente, quando a pandemia passar, a história vai se repetir e a vida do usuário de transporte público voltará a ser um loop temporal de uma aventura diária com fragmentos de terror, drama e suspense. Diferentes tipos de pessoas entrando e saindo dos ônibus, vendedores de picolé, doce, água e banana frita. Filas nos terminais, pessoas suadas cansadas, aglomeradas. Cabelos assanhados, suor excessivo, roupas amassadas. Tapas, empurrões, gritos. Abre a porta, fecha a porta, passa na catraca, desce do ônibus. Termina um dia e no dia seguinte, tudo se repete. Nada de novo, mas é o que tem. Mais empurrões, filas e aglomerações.
Você sente falta? Eu não.