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Panturrilhas em chamas

Crônica de Matheus Monteiro
Estudante do 7º período do curso de Jornalismo da Faculdade Martha Falcão
Publicado em 05 de junho de 2020
Foto: Reprodução / Jornal Extra
Olhando para o passado em comparação com o agora, é interessante identificar os erros cometidos, os acertos feitos e a fatídica pergunta: o que poderia ter sido diferente? Mas quando penso nas angústias e sofrimentos sentidos com o passar dos anos, me pego voltando há uma época mais simples, numa tarde específica. Por mais cômico que pareça, eu não estava feliz naquela ocasião. Hoje não sei dizer por quê.

Manaus, Amazonas, verão de 2010. Eu estava no oitavo ano do Ensino Fundamental, uma época, considerada por muitos, essencial para a construção da personalidade de um indivíduo. Era cinco da tarde e minha aula de reforço tinha acabado. Naturalmente, eu a fazia porque, segundo meus pais, apesar do talento, eu era extremamente preguiçoso. Eles não estavam errados, visto que, modéstia à parte, ainda me considero assim.

Então, voltando ao assunto, meu reforço havia acabado. Apesar da necessidade, nunca havia gostado daquele lugar, muito menos sabia de onde meus pais ouviram falar da universitária que ajudava, na própria casa, cerca de meia dúzia de crianças a estudar. Apesar de ter uma boa memória, não me lembro do seu nome. 

Naturalmente, como a criança impaciente que eu era, havia feito um trato com o meu pai: caso ele demorasse mais de 10 minutos para me buscar no reforço, eu voltaria para casa sozinho. Dito e feito: logo pegava minha mochila e ia andando pela rua. A professora morava ali perto, no Belvedere, e o meu destino se encontrava mais acima, no Planalto. Antes de realizar o trato, meu pai e eu calculamos a distância de tal trajeto: dois quilômetros.  

Muitos que estão lendo devem estar pensando: “dois quilômetros? Isso é mole! E eu achando que era mais longe!” É, podem ter sido apenas dois quilômetros, mas para um garoto de 12 anos que não possuía muita liberdade ou autonomia, parecia uma jornada incrível. 

Pois bem, saído da casa dela, o caminho até a minha já havia sido decorado: passa pela porta, anda para a esquerda, a rua vai fazer várias curvas até chegar na Avenida Dublin, daí é só subir a ladeira quilométrica e íngreme até chegar num mini shopping, então continua direto até a distribuidora de bebidas que fica na esquina da rua de casa, entra pela direita e pronto, bem no meio da rua, minha casa.

Até aí tudo bem, segui meu caminho. A rua em questão não tinha saída, nem entradas, você tinha que continuar seguindo enquanto ela fazia curvas até chegar à avenida principal. Em uma das curvas, havia na calçada um palanque de pedra, coberto de mato e bem mais alto que a calçada em si. Como uma criança aventureira, claro que pulei nele e fiquei me equilibrando enquanto seguia meu caminho. Depois de uns cinco minutos de caminhada, cheguei ao maior desafio do trajeto: a Ladeira.

Não podia me atrasar, então não perdi tempo. A pior parte de subir uma ladeira é que eventualmente suas panturrilhas ficarão com a sensação de estarem em chamas. Acompanhado do tóxico aroma da fumaça dos carros passando repetidamente na avenida, o clima piorava mais a situação.

Continuando a subida, passei pelo antigo restaurante chinês que havia ali. Bem tradicional, com portas laranjas em formato de círculo, e mais uma vez o nome não me vem à memória. Não entendia por que havia fechado, já que a comida era tão boa. Eventualmente, fiquei triste por só ter comido lá uma vez.

Seguindo mais à frente, já estava encharcado de suor, a testa tendo que ser enxuta com a mão à cada passada. O que me ajudava a continuar subindo aquela ladeira era a proximidade com a parte mais interessante do trajeto: uma oficina.

Por que a mais interessante? O que havia ali? Bem, diferentemente de outras oficinas, esta era de carros antigos. Lá, o comum era ter Mustangs e Opalas dos anos 1960. Vez ou outra eu passava um tempinho lá admirando os carros, logo, deixando minha mãe mais preocupada com a minha demora. 

Já com as panturrilhas em chamas, passo pelo posto de gasolina e finalmente a ladeira acaba, o que significa que cheguei no mini shopping. Não tinha nada de mais lá, algumas lojas e um salão. O máximo que já fiz ali foi acompanhar minha mãe enquanto ela fazia as unhas. Mas o que havia ao lado do shopping que era especial: uma casa de um senhor que tinha um jambeiro bem na entrada. Passar por ali me lembrava das tardes andando de bicicleta, em que roubava alguns jambos para comer. Infelizmente, não estava na época, visto que o tapete rosa das flores estava abaixo da árvore.

Mais à frente estava a bandeira vermelha mostrando o caminho, ou melhor, a placa vermelha da distribuidora de bebidas que ficava na esquina da minha rua. Até então, minha única lembrança dali era descer a rua e comprar cervejas para meu pai, voltando correndo para elas não esquentarem. Anos depois, passei a comprar cerveja para mim mesmo ali, e também corria para que ela não esquentasse no caminho, mas já não prestava tanta atenção dos detalhes do caminho.

Pois bem, reta final. Subindo a rua, passo pelas casas de vizinhos que nunca conheci. Uma em específico era de um senhor cujo cachorro era enorme, mais velho que eu e sempre latia para quem passava. Apropriadamente, o cão se chamava Zeus. Por fim, chego em casa, dando de cara com a minha mãe, preocupada comigo pela demora, e em seguida ouvia suas reclamações. 

A vida era mais simples, entre impaciência, queimações de panturrilha, roubos de jambo e maratonas de cerveja alheias. Fica a saudade de um tempo que não volta mais, e de como eu o enxergava.
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