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Os olhos que ninguém vê

Crônica de Ronaldo Martins
Estudante do 7º período do curso de Jornalismo da Faculdade Martha Falcão
Publicado em 04 de junho de 2020
Foto: Juliana Arini/FolhaPress
São sete horas da manhã. O ambiente ao meu redor é muito frio, de congelar. Abro os olhos e logo percebo que é um novo dia. A única certeza que tenho até o momento foi que meu cobertor me protegeu dessa geleira toda, me proporcionando algumas horas de descanso tranquilo e confortável. Depois, um “banquete” regado a pão com manteiga e café com leite. Às vezes, o cardápio vem acrescentado de queijo e presunto. Digno de um rei, não? Sentando-se à mesa, já planejo como será o decorrer do dia. Me questiono se terá assento disponível para se sentar no ônibus, ou se farei parte dos “encoxados”.

Já adotei a parada do ônibus como minha segunda casa. E da segunda casa até o meu local de destino é um teste de paciência com doses de resistência. Lá se vão quase 30 quilômetros de distância. É uma verdadeira cruzada. Dependendo do trânsito, chego a ficar horas enclausurado dentro do ônibus. O que me resta é olhar pela janela, se não quiser gastar a bateria do celular toda nesse percurso. 

Observo durante toda a viagem como a vida realmente é: cruel, atingindo muita gente, não perdoa ninguém. A criança pedindo dinheiro no sinal, a mulher na cadeiras de rodas clamando por uma ajuda, o senhor vendendo água debaixo do sol quente, o menino limpando vidro do carro. Todos fadados ao mesmo destino. 

Me faço várias perguntas. Será se essa criança teve a oportunidade de dormir num quarto confortável? Será se esse menino já comeu algo hoje? Quando esse senhor vai parar de trabalhar para descansar? A mulher tem filhos? Será que ela está na luta para levar comida para eles? A viagem continua.

Na mesma hora, lembro de um livro que tinha lido falando sobre meritocracia. Aquele papo de que para todo mundo conseguir alcançar seus objetivos, basta apenas seu esforço. Não que eu discorde totalmente dessa tese; a questão acredito que não seja nem competir de forma igual, é que há pessoas não têm nem a escolha de chegarem na competição.

Após um turbilhão de pensamentos, observo que, chegando perto do meu destino, o entorno se transforma em uma selva de pedra, sem o verde da natureza. A realidade aqui é bem diferente do meu ponto de partida. Parece até outro mundo. As horas passam rápido nesse outro planeta. 

Faço o mesmo percurso todos os dias há cerca de três anos seguidos. É como se eu soubesse onde ficam exatamente todos os buracos que existem na ruas. Como de costume, abro a janela do ônibus para sentir a brisa do vento da noite. De repente, vejo um homem se cobrindo com uma espécie de pano bem sujo. Talvez tenha decidido que o banco da parada vai ser sua cama nesta noite. Novamente me pergunto: o que aconteceu na vida desse homem para ele vir parar aqui? A vida agora deixa de ser cruel para se tornar fria.

A única certeza que eu tenho novamente é que, chegando em casa, meu cobertor vai estar lá me esperando para me proteger de mais uma noite fria. E pela manhã, haverá o café na mesa me esperando como ocorre todos os dias. E, se não acontecer nenhum imprevisto, de tarde passarei outras longas horas dentro do busão. 

A história se repete, porém, com protagonistas diferentes. Ao olhar pela janela, vejo que a menina, a mulher, o senhor e o menino já não estão lá. Agora é um casal de irmãos bem pequenos, uma mulher carregando o filho no colo, um idoso com uma bolsa de colostomia, um morador de rua. Todos estão atrás um único objetivo: o dinheiro. Sua sobrevivência. Os mesmos questionamentos que fiz no dia anterior, faço agora novamente.

Já é noite, tenho que retornar pra minha residência mais uma vez. Sei que, chegando em casa, vou ter algo para comer. Água para beber. Uma tevê para assistir. Um quarto pra dormir. Será que todas as pessoas que vi hoje na rua pedindo dinheiro também vão ter isso? Meus questionamentos ficam no ar. Amanhã vai acontecer a mesma coisa, como sempre.
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