O ano é 2019, tudo normal, ou como diz um bordão famoso entre os jovens: “eu era feliz e não sabia”. Sigo minha rotina para ir à faculdade que, segundo o Google Maps, tem a distância em linha reta de 2 quilômetros e 75 metros, do bairro São Jorge ao Adrianópolis.
Acordo cedo — mas que preguiça! Tomo banho — que água fria! E me atualizo das informações assistindo ao jornal enquanto tomo meu café. A combinação perfeita, hein? Jornal mais café, que delícia. Quando menos percebo, meu deus, o ônibus está se aproximando! Costumo chamá-lo de “lenda”, de tanto que ele custa passar — mais especificamente, de uma em uma hora. Com rapidez, corro para o banheiro para escovar os dentes, desligo a televisão e o roteador do wi-fi, pego minhas coisas e dirijo-me, desesperadamente, à parada de ônibus.
Você deve estar se perguntando por que tanto desespero, né? É que no dia anterior, minha professora me chamou a atenção por sempre chegar atrasado em suas aulas. Uns 40 minutos de atraso, apenas. Fiquei constrangido, é claro, e não queria passar por essa situação uma outra vez. A partir daquele dia, minha meta era não mais atrasar para as aulas.
Já na parada de ônibus, encontro alguns desconhecidos e começo, discretamente, a observá-los. Uns estão bem dispostos, e fico me perguntando como é que pode, em plena sete da manhã, uma pessoa estar aparentemente com tanta energia como aquela. Outros, por sua vez, estão bem sonolentos, e são com quem me identifico. Já outros ouvem suas músicas em fones de ouvido. Em comum, temos a ânsia pela chegada da “lenda”.
Em pouquíssimos minutos avisto, longinquamente, dobrando a esquina, uma coisa verde, um tanto veloz. É ele, o 118! Ao se aproximar, faço a parada, entro no ônibus, e sigo até meu destino final. Passo a desconsiderar a linha reta do Google Maps, pois contando as voltas que o coletivo faz em vários bairros, os 2 quilômetros e 75 metros serão, sem dúvida, quadruplicados.
Está sentindo esse calor humano? Quanta gente, o ônibus está lotado!
No caminho até a faculdade, há inúmeras coisas que podem ser observadas, assuntos que podemos listar e debater, quem sabe. Por exemplo, poderia falar das pessoas tentando adivinhar se o próximo passageiro a entrar vai anunciar um assalto —Ah! Acabou de entrar um cara negro, percebo o comportamento das pessoas, aquela senhora que estava com o celular na mão acabou de guardá-lo em sua bolsa, e os demais também se policiam. Preconceito também é um assunto que podemos discutir.
Posso falar do próprio ônibus quase desgovernado também. Para a maioria das pessoas, é a única opção de deslocamento para chegar até o trabalho, faculdade, enfim, e levantar questionamentos acerca dos impostos absurdos os quais não vejo retorno; posso falar da diferença social existente desde a minha casa até a faculdade, e muitos outros assuntos, mas agora, eu só quero sair desse congestionamento e chegar antes das oito na Martha.
Quase 15 minutos se passaram. Tenho mais 45, várias paradas feitas e um ônibus cada vez mais lotado. O motorista decide não mais pegar passageiros. Os quilômetros já foram duplicados e a lenda ainda está tentando sair do bairro. A rua que dá acesso à avenida Brasil não tem semáforo, então é preciso esperar a paciência, ou melhor, a gentileza de um bom cidadão até parar seu veículo e, assim, prosseguir com a viagem.
Alguém parou. Seguimos viagem. Ônibus na Avenida Brasil, parado. Carros buzinando, gente ficando sem paciência com a lentidão do trânsito. Pego o celular para ver a hora, ainda me restam 40 minutos. “Vai dar tempo!”, alegremente sussurro em meu interior. Devagar vamos indo. Agora, estou rumando ao retorno, ou seja, o coletivo vai entrar na mesma avenida no sentido bairro-Centro. Quem passa diariamente por ali poderia, de olhos fechados, dizer: “estou na Avenida Brasil”. Sabe por quê? Um cheiro peculiar, ou, um tanto quanto desagradável mostra a localidade. Aqui eu poderia levantar questionamentos acerca do saneamento básico, quase que inexistente em nossa cidade, mas estou preocupado mesmo em não me atrasar.
Seguimos viagem. Os veículos começaram a se mover um pouco mais e o ônibus segue direto sem parar. Não há um mínimo espaço no interior do coletivo. Ao se aproximar do viaduto da Avenida Álvaro Maia, consigo avistar torres que refletem a luz solar. São os prédios. Notou a diferença? No meu bairro não há prédios. Não como estes. São apenas casas, umas, inclusive, à beira do igarapé, feitas com estacas, pedaços de panos, telhados ou zincos, ou até mesmo papelão, em que famílias tentam sobreviver. Sentiu o impacto do grande problema chamado desigualdade social?
Ao sair do viaduto, na segunda rua paralela, um veículo se choca contra a lenda. Todos ficaram assustados. O estrondo foi realmente assustador. O motorista parou o ônibus para prestar socorro à vítima do acidente. Umas pessoas desceram para ver a situação do senhor que, infelizmente estava caído no chão, inconsciente e sangrando bastante, segundo o que estão comentando aqui. Pelo visto, não é um dia de sorte nem para o acidentado, tampouco para mim.
Todos se perguntavam: “vamos esperar aqui ou vamos ter que descer e pegar outro ônibus?”. Foi então que o motorista pediu para que todos se retirassem do coletivo. Eu poderia muito bem esperar outro ônibus, mas, como estava com um pouco de pressa, decidi ir andando dali até a faculdade. Aparentemente, estava perto e eu chegaria rapidamente. Mal sabia que dali até a faculdade a distância em linha reta é de 1 quilometro e 27 metros, segundo o Google Maps. Segui a Avenida, meu corpo começou a ficar quente, me senti ofegando, e na faixa de pedestre começo a me questionar se essa teria sido uma boa ideia. Não, não foi.
Cansado, sigo meu caminho. Espero o semáforo fechar para que eu possa atravessar. Depois de andar toda essa distância, aproximo-me da faculdade. Ufa! Confesso que me esforcei bastante para chegar cedo, porém, o congestionamento, o acidente, e a infeliz ideia de ir caminhando até a faculdade, me fez chegar atrasado. Mais uma vez.