Incertezas, notícias ruins, perda de familiares, saudades da rotina antiga. Essas foram algumas consequências que a pandemia do novo coronavírus trouxe para a humanidade. O vírus invisível pode estar em qualquer lugar e o contato físico foi reduzido drasticamente. Mas como fica a saúde mental com a preocupação do que vem no dia de amanhã e a saudade do afeto físico? Para tentar amenizar essas mazelas da alma, terapeutas tiveram que se reinventar e adaptar suas ferramentas, usando a tecnologia para mediar seus atendimentos e garantir que a ansiedade e depressão não cresçam e se tornem mais um inimigo em meio a pandemia.
Assim, o divã deu lugar à tela e a terapia online ganhou espaço. A necessidade de resolver o que aflige cada paciente e acabar com o medo do que vem a seguir o mais breve possível em meio a um acontecimento extraordinário é o que a psicóloga Amanda Tundis, do Instituto Íntegra, em Manaus, enfrenta. “Os atendimentos antes da pandemia eram relacionados a vários aspectos. Os clientes entendiam a questão das sessões e compreendiam todo o quadro terapêutico. Hoje não, os pacientes estão mais ansiosos. Não querem muita pausa, querem ser atendidos logo. Querem resolver o problema o mais rápido possível, em uma única sessão, de tanta ansiedade que está acontecendo”.
Para Amanda, os principais motivos que vem mantendo as pessoas em terapia durante a quarentena são: transtornos de ansiedade, episódios depressivos e a síndrome do pânico. Surpreendentemente, antes da pandemia saiu uma pesquisa, feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS), na qual se informa que o Brasil é o país campeão em casos de ansiedade. Dados da OMS apontam que cerca de 9,3% da população já sofria com o problema, sendo as mulheres as mais afetadas.
Os sintomas psicológicos mais comuns da ansiedade são: apreensão, medo, angústia, inquietação, insônia, dificuldade de concentração, incapacidade de relaxar, sensação de estar no limite, preocupação excessiva com o futuro e pensamentos catastróficos. Se isso já era ruim antes, imagine num cenário em que esses desconfortos se tornam mais concretos até na mente de uma pessoa que não sofra de ansiedade ou depressão. Sobram perguntas como “O fim do mundo chegou?” “Será esse o ‘famoso fim dos tempos’?”, “Mas, eu não vivi tudo o que eu tinha pra viver, e agora?”.
O dia de amanhã sempre foi incerto. Mas havia uma breve luz no fim do túnel. Em tempos de coronavírus, essa luz parece ter se apagado para alguns, e quanto tudo está escuro, as terapias vem como uma pilha para a lanterna voltar a acender.
A saúde mental dos ribeirinhos
A imensidão dos rios do Amazonas não impediu a Covid-19 de chegar ao interior do Estado. O medo de não ter a mesma estrutura hospitalar de uma cidade grande e a distância da capital são mais um bônus de consequência para a saúde mental dos ribeirinhos do maior estado brasileiro. E como fica o atendimento deles quando muitos não têm as ferramentas necessárias para um atendimento online? Na última pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, foi constatado que, no Amazonas 70%, tem acesso à internet. No entanto, esse número cai para 30% no interior do estado.
A psicóloga Luzijane Fatim reside em Manaus. Porém, nem os quilômetros de rios e estradas impedem que ela atenda os habitantes do município de Urucurituba, apelidado de “a princesinha do baixo Amazonas”, distante 219 km da Capital amazonense. Atuando há 15 anos da cidade de 23 mil habitantes, ela afirma que a única forma de um atendimento, no momento, é por ligação telefônica tradicional. Ligações por WhatsApp são raras. “Eles não têm acesso a ferramentas para uma tradicional terapia online. Na maioria das vezes, o sinal de internet no interior também não colabora. Então, temos que nos virar com o que tem. Deixar de dar suporte a eles é o que não podemos, ainda mais nesse momento”, reflete.
Em Urucuri, outro apelido carinhoso dado pelos habitantes, além de terem que lidar com as incertezas da pandemia, os pacientes ainda têm que conviver com a ansiedade de não saberem quando poderão voltar a fazer seus tratamentos médicos corriqueiros na capital. Muitos têm que ir à Manaus para atendimentos que somente o sistema de saúde de uma cidade grande fornece. “Eles não estão conseguindo ver uma luz no fim do túnel. Alguns dos meus pacientes já são diagnosticados com depressão e agora intensificou muito mais. Tem os casos também de pessoas que estão doentes e precisavam vir para Manaus e não podem, pois não pode sair e nem entrar no município. Isso causa um pensamento de ‘mas como vai ser meu tratamento agora?’”, relata Luzijane.
E como funciona a terapia online?
Em 2018, o Conselho Federal de Psicologia emitiu a resolução CFP nº 011/2018, que torna possível a prática de orientação psicológica à distância e em tempo real, autorizando algumas modalidades da psicologia serem feitas de forma online, desde que autorizados pelo Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (SATEPSI) e pelo CFP. O que ninguém imaginava era que, dois anos depois, esse atendimento online fosse se tornar tão necessário.
Diante desse cenário, os profissionais que cuidam da saúde mental têm encontrado seus pacientes através de diversas plataformas. Há aqueles que preferem o WhatsApp, outros que usam o Skype, mas todos com o mesmo objetivo: ajudar quem precisa de um suporte emocional para lidar com este período de isolamento. A psicóloga Amanda Tundis explicou que seu cadastro para atendimento online só foi autorizado este ano. “Foi realmente só durante a pandemia que comecei a atender remotamente e me adaptar com essas novas ferramentas”.
Se os psicólogos passaram por uma adaptação no trabalho, os pacientes também tiveram que se reordenar para esse tipo de atendimento. Nathalia Gomes coincidentemente também é estudante de psicologia, mas antes de tudo cuida da sua própria saúde mental. Ela relatou que começou a fazer terapia porque já teve problemas de diversas naturezas, mas todos conectados de alguma forma com a mente. “Eu vivia em um relacionamento abusivo e, isso desenvolveu em mim muitos problemas, como distúrbio alimentar, depressão, ansiedade e assim, foi muito ruim não ter alguma coisa que me desse uma luz, que me ajudasse ou me desse um autoconhecimento. Por isso resolvi procurar ajuda de um profissional”, relembra.
Para Nathália que já lidava com todos esses problemas e agora passa pelo período de isolamento, os sintomas de ansiedade cresceram ainda mais. “Agora eu não tenho mais uma fuga, de estar me sentindo mal e decidir ir ao shopping tomar um sorvete, por exemplo, não existe essa possibilidade. Além disso, não tenho mais um momento individual por estar dividindo a casa com a família. Você precisa conviver 24h com pessoas com que você pode ter um relacionamento bom ou não. Acho que a pior parte para mim é saber que vai continuar assim por um tempo indeterminado. É o que me dá mais ansiedade”.
Os mesmos recursos que são utilizados na consulta presencial também são aplicados no ambiente virtual. Uma pesquisa realizada pela Universidade de Minnesota mostrou que o atendimento online se mostra tão eficiente quanto o presencial e ainda sai mais barato. A psicóloga Luzijane Fatim explicou que existem prós e contras. “Nesse momento o pró é que cada um está no conforto da sua casa, devido a situação. Mas o contra é a questão de eu não poder ver justamente a postura corporal do paciente. Às vezes, no telefone, eles não falam tudo por terem outras pessoas na casa, mesmo que fiquem em outro cômodo. Ficam receosos. Uma outra questão é o acolhimento. Temos que nos esforçar muito mais, usando a nossa voz, demonstrando estamos ali justamente para ouvi-los e compreender o que estão passando”.
A estudante Laura Rocha, de 20 anos, também mantinha um acompanhamento psicológico antes da pandemia. Mas ela é do time “do contra” e declara que não gosta da consulta online. “Eu acho que são diferentes. Eu não gosto de terapia por vídeo, tanto que quando minha psicóloga abriu vaga para fazer presencial eu fui correndo. Eu acho ruim, não me sinto à vontade, sinto que não consigo falar tudo. O processo é exatamente igual ao presencial, mas eu sinto que não consigo me abrir o suficiente porque parece que está eu, ela e minha família inteira ouvindo”, afirmou Laura.
A saúde mental dos recuperados da Covid-19
Estudos ainda estão em andamento para identificar possíveis sequelas à saúde mental de pacientes que contraíram covid-19 e tiveram que lidar com um turbilhão de sentimentos durante esse processo. Além do medo de não sobreviver, há casos em que uma pessoa da família sobrevive, e outra não, ou ainda, situações em que se perdem mais de um familiar de uma vez só.
Uma pesquisa feita por cientistas da Universidade College London, na Inglaterra, e publicada pela revista científica The Lancet Psychiatry, afirma que a maioria das pessoas que ficaram internadas com a covid-19 e se recuperaram não deve desenvolver problemas de saúde mental em curto prazo. No entanto, em longo prazo, esse risco existe. De acordo com o estudo, os pacientes têm grande propensão a depressão, ansiedade e transtorno do estresse pós-traumático.
A psicóloga Luzijane relata que está atendendo um paciente com esse sintoma. “Tenho um paciente que já recebeu alta. No entanto, após o retorno pra casa, ele está com crises de pânico. Não consegue mais dormir porque ficou impressionado com o que viu no hospital. Ele relata que viu gente morrendo do lado dele e pessoas agonizando com falta de ar. Está traumatizado. São claros sintomas de estresse pós-traumático”, afirma a profissional de Urucurituba.
Nesse caso, Luzijane conta que somente a terapia por ligação não resolve. “É um paciente que reside em Manaus e o caso é muito grave. O atendimento remoto não vai resolver. Ele precisa de um acolhimento presencial. Vai ser um tratamento bem mais extenso, porque ele presenciou coisas traumatizantes e está se sentindo culpado por ter vencido a doença e outras pessoas não”.
A sobrecarga emocional dos “heróis da pandemia”
Além de terem que acumular todas as angústias de um cidadão comum, os profissionais de saúde ainda estão lidando com o papel de herói atribuído a eles por estarem na linha de frente no combate ao coronavírus. No entanto, o fardo de carregar esse título sai caro à saúde mental desses profissionais: eles estão expostos ao risco de contaminação e ainda presenciam colegas de profissão perdendo a vida pela doença.
A psicóloga Amanda relata que atende profissionais da saúde e que uma das principais questões era como tratar os pacientes, já que estudos ainda estão em andamento sobre o assunto. “Estou com um médico que ‘pirou’ no começo. Ele teve uma sobrecarga de trabalho muito grande. No começo, eles estavam muito preocupados com a questão de como tratar essa doença, quais remédios usar. Depois que começaram a descobrir remédios que poderiam tratar, a situação ficou mais fácil para alguns deles”.
Ela ainda afirma que muito profissionais tiveram que ser afastados pela ansiedade de viver a pandemia e ainda verem colegas de trabalho morrendo diariamente. “A maioria dos profissionais que atendi foi afastada de hospitais por causa de ansiedade e depressão. Teve uma que se afastou justamente porque ela ficava muito nervosa e ela era umas das técnicas de enfermagem que entubava os pacientes. Ao mesmo tempo em que eles precisam trabalhar, é adoecedor para quem tem que permanecer ali. Mentalmente eles ficam com uma estafa muito grande”, explica.
Pensando nesses profissionais, empresas privadas como a Johnson & Johnson Brasil oferecem cuidado psicossocial a profissionais da saúde pública e privada de todo o país, especialmente médicos e enfermeiras. Com o nome “Cuidando de quem cuida de nós”, o programa dá a opção de dois tipos de atendimento: Inteligência Artificial, para solucionar problemas de saúde emocional com dicas e exercícios de autocuidado, além de um outro aplicativo. Nele, as primeiras cinco sessões são gratuitas, para escolher um psicólogo e agendar o melhor horário de atendimento.
E o pós pandemia?
Nada será como antes. Essa é a única certeza sobre o mundo pós-Covid. Se o cotidiano não será igual, quem dirá a saúde mental das pessoas. Por isso, Amanda acredita que a pandemia poderá agravar a demanda por serviços de atenção à saúde mental. “Com certeza haverá uma demanda maior. As relações sociais foram totalmente modificadas e o retorno será um baque para alguns. Umas pessoas vão ficar mais tranquilas com a reabertura. Para outras, mesmo ansiando por isso, vai ser estranho. Além disso, ainda há as sequelas que o período de isolamento causou a alguns”.
Será como se estivéssemos no escuro, quando alguém abre a cortina e toda a claridade vem nos olhos? No começo, é difícil se acostumar com aquela luz toda, mas depois percebe-se que ela é necessária para clarear o ambiente e começar um novo dia. “Uma paciente relatou que estranhava ver o contato físico em filmes e séries, e que quando as coisas voltassem ao normal, não ia saber muito como reagir. Mas acredito que depois de um tempo as pessoas irão se acostumar com essa ‘nova/antiga’ realidade”, reflete Amanda.
O historiador israelense Yuval Noah Harari, autor do livro “Sapiens - Uma breve história da humanidade”, afirmou em um artigo no jornal inglês Final Time, que nada será como antes. “Sim, a tempestade passará, a humanidade sobreviverá, a maioria de nós ainda estará viva — mas habitaremos um mundo diferente”. Até lá, a tecnologia está sendo um alento para a sensação de deriva que o isolamento trouxe para a sociedade.