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Puxões de cabelo pelo caminho

Crônica de Cintia Guimarães 
Estudante do 7º período do curso de Jornalismo da Faculdade Martha Falcão
Publicado em 14 de junho de 2020
Foto: Reprodução- TV integração
Cinco da manhã era o horário programado do despertador. Por vezes, acordava um pouco antes do toque “irritante” (como reclamava minha irmã quase todos os dias) só para levantar a cortina e espiar, da janela, a cor do céu, com o pensamento sempre positivo. Pedia a Deus por um bom dia, independente das situações que surgissem no decorrer dele.

 Banho tomado, maquiagem feita, era hora de ficar atenta no app do ônibus para não perdê-lo. Engraçado, tinha mania de cronometrar meu tempo para ver se algum dia essa atenção virava um hábito e saia tudo dentro dos conformes. Mas, por incrível que pareça, sempre saia correndo pra parada. O vizinho já tinha até frase na ponta da língua, do outro lado do muro: “Lá vem ela, atrasada como sempre. Tem que acordar mais cedo menina!”. Eu soltava aquele sorriso, seguido de um bom dia, e continuava às pressas na tentativa de não perder o ônibus, até porque nem sempre o app está certo.

 E lá vinha o ônibus, 442 é como se apresentava. Às sete da manhã, ele mais parecia uma lata de sardinha de tão lotado, como diz o caboco. “Meu pai do céu!” era uma das clássicas interjeições que sempre surgiam em momentos de espanto a isso. “É, filhona, cê num é rica não. Estica o bracinho pra fazer parada, e se prepara pra sentir literalmente o calor humano!”, eu dizia a mim mesma.

 Entrei, ufa! Colocava o fone e escolho a playlist do momento, porque para algumas pessoas, e me incluo nessa lista, o dia era mais divertido quando se tem uma música para acompanhar. E que comecem os jogos na procura de um assento livre! Eu olhava para um lado e outro, procurando os rostos marcados pelo costume de vê-los todos os dias na mesma rota. Já éramos quase “íntimos”: sabíamos onde cada um descia, a farda da empresa ou da escola. Enfim, daqui a duas paradas, a fulana que trabalhava no salão Bella Hair iria descer. Vai, se espreme um pouco, vai se aproximando... Eu dava um sorriso tímido, como quem não queria nada, soltava um bom dia, e tinha como resposta outro sorriso. Assim, o assento era conquistado. 

Parece bobo, mas ninguém quer fazer uma viagem de aproximadamente duas horas em pé, de um lado da cidade pra outro. Esse era praticamente o tempo que levava pra sair da Cidade Nova até a Compensa, e vou te falar, já fiz esse percurso todo em pé! Por mais alto astral que você seja, é maçante o seu dia de trabalho começar assim.  

Seguíamos viagem na cadeira que, para aquele momento, mais parecia um trono, privilégio de poucos ali no ônibus. Eu curtia a música e tentava me concentrar na leitura de um livro, Cem anos de Solidão, que há algum tempo tentava terminar. Inesperadamente, fui interrompida por uma conversa de tom alterado e irritante, que surge da cadeira de trás. “Misericórdia, minha senhora!”, é a voz que gritou na minha cabeça, e direcionei um pouco o pescoço só pra espiar a tal senhora. Em questão de segundos, nossos olhos se cruzaram e a reação dela era a de quem parecia ter ouvido meus pensamentos. 

Fiquei discutindo internamente: “Como pode a pessoa ser tão sem noção, falar ao celular como se tivesse gritando em um alto falante?”. Fechei o livro, aumentei o volume da música pra não ouvir a discussão alheia e desinteressante, quando sinto um puxão de cabelo. Pasmem! Eu não queria acreditar que aquela senhora tinha puxado meu cabelo. Virei rapidamente para trás, olhei suas mãos e fixei os meus olhos bem nos olhos dela, pensando em intimidá-la, sem sucesso.

Mais uma vez olhei pra mão dela, e retomei a postura correta, com trocentas baboseiras passando pela minha cabeça. “Meu pai do céu, por que essa louca puxou o meu cabelo, o que ela pretende com isso?”. Sem mais ideias absurdas, veio a minha mente o que minha mãe me ensinou desde pequena: “Quando você sentir que algo ou alguém não vai te fazer o bem, feche os olhos e peça com o coração que Deus te guardar e te livrar do mal”. 

Quem disse que eu conseguia parar de pensar naquilo? Comecei a orar e recitar todos os versículos de livramento que eu tinha em mente. Não contente, me levantei e fiquei perto da porta, com os olhos fixos a qualquer movimento da cidadã nada amigável. Quando ela também se levantou e ficou do meu lado, respiração ofegante. Pensei: “Agora ela vai querer me bater, só pode!”. Continuei olhando nos olhos dela, já sabendo que ia descer na próxima parada. Puxei a cigarra e, antes de descer, saiu dos meus lábios um sorriso seguido de “tenha um bom dia!”.

Parecia que tinha deixado um saco de cimento dentro daquele ônibus. Aquela sensação negativa que estava sentindo simplesmente evaporou quando desci. A senhora seguiu viagem. Sabe-se lá quais eram suas intenções. Nunca mais a vi, espero que esteja bem.

Incrível como as situações mudam de uma hora pra outra e de repente somos pegos sentindo falta até do que antes nós reclamávamos. Desde o início da pandemia, percebo as mudanças nem sempre tão agradáveis. Hoje me deparo com o ônibus vazio. Não tem mais a disputa pela cadeira. Se antes o trajeto que normalmente levava quase duas horas, no qual era possível ouvir quase toda uma playlist, dividir pensamentos aleatórios, planos traçados e apagados na imaginação durante um trânsito caótico, agora mal dá pra tirar um cochilo rápido. Tenho cuidado para não passar da parada. Encarar o ônibus lotado por algumas horas era bem melhor que entrar nele vazio hoje, com máscara, álcool, e, por medida de segurança, ter que manter certa distância das pessoas.

São dias difíceis, que jamais pensei viver. Há o medo de sair de casa, de falar com as pessoas tendo que se preocupar em não tocá-las, de me deparar com a ignorância do descaso de outros. É triste não poder se aproximar dos que amamos para nos resguardarmos a todos e proteger os que são mais vulneráveis. Restam as situações que, por diversas vezes, nos fazem tirar da cartola algo novo para superar o que estamos passando e nos dar forças para seguirmos na certeza de que todo esse turbilhão passará e nos deixará mais agradecido pelo que temos, mesmo que levemos alguns puxões de cabelo pelo caminho.
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