Blog Layout

Os buracos entre nós

Crônica de Douglas Duarte 
Estudante do 7º período do curso de Jornalismo da Faculdade Martha Falcão
Publicado em 14 de junho de 2020
Foto: Reprodução- Em Tempo
Durante a minha vida de universitário na cidade de Manaus, tenho feito um percurso quase que igual todos os dias, indo de casa para a faculdade. Acordo pela manhã bem cedo e vou andando. Moro na Cachoeirinha e rumo para o Adrianópolis, duas zonas vizinhas. Assim, saio da Avenida Castelo Branco, próximo ao Terminal 2, ponto de encontro de ônibus que vêm de todos os bairros da cidade, e meu percurso dura cerca de meia hora até chegar Avenida Mário Ypiranga, onde está localizada minha faculdade.

Embora os bairros onde moro e estudo sejam próximos, existe uma diferença social notável entre elas; basta fazer o percurso que faço e ficar atento aos detalhes. Neste caminho, você vai facilmente da classe D e C até as classes A e B. A questão estrutural das ruas é o primeiro ponto. 

Para entender as diferenças entre elas, fiz uma brincadeira: desde o momento em que saio de casa, conto o número de passos que dou até achar um buraco na rua. Fica tipo assim: 1, 2, 3, 4, 5, 6, buraco na rua. Então anoto o número em que encontrei o buraco e começo contar tudo de novo até encontrar outro buraco. Em todo o trajeto dentro na Cachoeirinha, é possível contar um buraco a cada 20 passos. Quando eu entro no Adrianópolis até a faculdade, a brincadeira deixa de ter graça, pois não é possível encontrar nenhum buraco.

Outro ponto que mostra essa diferença é a quantidade de pessoas nas paradas de ônibus durante o trajeto. Na parte próxima à minha casa, é perceptível a grande quantidade de pessoas em paradas de ônibus indo para os seus trabalhos, escolas, faculdades e outros atividades. Os mais bobinhos podem pensar que as pessoas estão indo de ônibus por estarem preocupadas com o meio ambiente e poluição, e que por isso evitam o uso do carro. Mas a realidade é que nem todos têm condições financeiras para comprar um. Se tivessem, com toda certeza não estariam em uma parada para enfrentar o caótico transporte coletivo da cidade, com ônibus lotados e pessoas empresadas em suas portas todos os dias nos horários de pico.

Esse cenário muda quando você chega no ponto próximo a faculdade. O número de pessoas pegando ônibus para realizarem suas atividades é muito menor. Na verdade, percebe-se que as paradas nestes locais servem apenas como desembarque para trabalhadores e estudantes, e não exatamente de moradores da área nobre.

Outra coisa que deixa claro a diferença entre os dois bairros é a questão estrutural das residências. No meu ponto de partida vejo apenas casas simples, construídas sem muito planejamento, algumas muito grandes, outras muito pequenas. Vemos até mesmo pessoas que nem casa têm e moram nas ruas do bairro. Já no Adrianópolis, as casas sem escondem em condomínios fechados, entre grandes prédios empresarias e de residências, e aí sim percebo o planejamento dos condomínios, as casas de alto padrão, supermercados e shoppings grandes que facilitam o acesso dos moradores desse outro mundo.

Hoje em dia, não tenho feito mais esse trajeto. Me encontro isolado em casa, devido as medidas adotadas pela OMS para evitar a contaminação pela Covid-19. Esse isolamento pegou muitas pessoas de surpresa, inclusive os governantes da cidade. Ficou claro para os manauaras que ninguém estava preparado para este momento. Da minha parte, fiquei pensando em como ficou a vida nos dois pontos do meu antigo percurso. Será que mesmo dentro de casa ainda seria possível ver tanta diferença social entre eles?

Uma das medidas adotadas na cidade exigiam que somente os serviços essenciais poderiam manter as portas abertas. Como elas tiveram grande impacto na nossa economia, a situação, que já estava ruim antes do vírus, ficou ainda pior: a diferença social cresceu entre as classes, uma diferença já perceptível há anos, verdade, mas que nunca havia ficado tão nítida para mim como agora. No meu breve olhar para a situação, vejo os ricos de um lado, que pouco estão sendo afetados pelo vírus economicamente, e os pobres, a grande maioria punida todos os dias pela doença. 

Claro que o vírus não escolhe classe social; temos, aqui na cidade, ricos e pobres afetados quase que na mesma proporção . O que os diferencia é a questão do isolamento. Vejo que amigos com uma condição financeira melhor têm a oportunidade de ficar em casa, sem a preocupação de ver seus recursos escasseando, conflito este que amigos com uma condição financeira pior enfrentam, fazendo o possível e o impossível para manter o isolamento sem maiores prejuízos e nem sempre sendo bem sucedidos nisso. 

Tenho classificado os dois grupos como amigos de Adrianópolis e amigos de Cachoeirinha. Os da Cachoerinha, que hoje assumem que fazem parte da classe dos pobres, mostram preocupação com o seu próprio isolamento, pois na medida em que o tempo vai passando e a quarentena é mantida, seus recursos, como alimento, por exemplo, viram o grande ponto de conflito. Perguntas tipo “Como eu vou me alimentar, já que estou sem trabalhar?”, “Como vou fazer para ganhar dinheiro, já que estou impedido de trabalhar?” surgem.

São perguntas que o amigos de Adrianópolis não fazem. Eles conseguem, com tranquilidade, comprar alimentos e manter todos os recursos necessários que possibilitam uma quarentena segura. A única preocupação talvez seja em sair para comprar mantimentos sem se contaminarem.

Para quem sai de uma das áreas mais pobres até a mais rica da cidade em apenas trinta minutos andando, fica a pergunta: por que há uma diferença tão grade entre bairros tão pertos? São tantas dentre as ruas, paradas, residências e pessoas. Na essência, um trajeto como esse mostra que mesmo tão próximos, estamos muito distantes de uma sociedade igual para todos.
Share by: