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O caminho de casa

Crônica de Anna Karina Ramos
Estudante do 7º período do curso de Jornalismo da Faculdade Martha Falcão
Publicado em 05 de junho de 2020
Foto: Freepik
Quando eu tinha 13, 14 anos, vivia uma aventura praticamente todos os dias. Eu estudava na mesma escola que a minha irmã do meio, a Lucy, que era 11 meses mais nova que eu. Nascemos no mesmo ano, mas sou de janeiro, e ela de dezembro. Um dia, decidimos que iriamos voltar para casa a pé. E assim foi dia após dia, ao longo de mais ou menos três meses. Tínhamos a companhia de duas amigas até a metade do caminho. Andávamos cerca de 7 km da escola para casa sem a nossa mãe saber.

Andréia, a nossa mãe, era muito jovem. Devia ter seus 27 anos e três filhos para criar. Tinha acabado de se divorciar e as coisas não estavam nada fáceis. Com muito esforço, ela juntava moeda por moeda, tudo contadinho para que pagássemos as passagens de ônibus para ir e voltar da escola, que ficava em um bairro diferente de onde morávamos.

Como não sobrava dinheiro para nada, voltávamos a pé para economizar o dinheiro e lanchar com minhas colegas após a escola. Ninguém sabia disso. Nem as outras meninas, e muito menos nossa família. O sinal batia, eu esperava junto às minhas amigas de turma a Lucy vir ao nosso encontro e partíamos em nossa jornada.

A rua da escola era bastante movimentada, com carros e pessoas competindo pelo espaço. Muitas vezes chegavam a esbarrar uns nos outros. Com a camisa da escola e short-saia colegial, seguíamos nosso caminho e logo encontrávamos o shopping Grande Circular. Às vezes passávamos pela praça de alimentação só para ver os filmes em cartaz e pegar um pouco do ar condicionado. Um pouco mais a frente, chegávamos à padaria onde costumávamos merendar. Sentávamo-nos, cada um dava a sua contribuição e conferíamos o que podíamos comprar com aquela quantia. 

Conversa vai, conversa vem, já passa das seis da tarde. Hora de ir! Já estava escurecendo e ainda tínhamos um longo caminho pela frente. A avenida Autaz Mirim, já naquela época, tinha muitos prédios comerciais: logo na esquina, havia um posto do antigo SOS, o Samu de hoje em dia, e, bem próximo, passando a parada de ônibus, o cursinho de informática onde anos mais tarde eu daria meus primeiros passos no mundo da tecnologia. O consultório odontológico ficava a algumas quadras dali. Mais alguns metros, e estávamos em frente à Delegacia de polícia. Sempre ficávamos intrigadas sobre o que se passava lá dentro, mas nunca tivemos coragem para entrar. 

Chegando à muvuca da feira do Mutirão, dávamos adeus às colegas e nos apressávamos, pois daquele ponto em diante, erámos só nos duas e Deus. No perímetro até a bola do produtor, muitas pessoas se exercitavam, em sua maioria, donas de casas tentando perder aquela barriguinha indesejada. Crianças também não faltavam, brincavam de pique e pega sem se preocupar com os veículos que passavam. Que aflição!

Aqui, o papo entre eu e minha irmã já era um pouco mais íntimo. Ficávamos com a consciência pesada em ter comprado lanche com o dinheiro da caminhada ao invés de o entregarmos em casa. Outras vezes, imaginávamos como seria a nossa vida se tivéssemos nascido em uma família com mais posses, que talvez não precisaríamos fazer esse sacrifício para sobrar alguns trocados. Mas logo esses pensamentos eram interrompidos pela buzina de um ônibus ou freada de um carro. Ao atravessar a rua, nos deparávamos com um bairro novo, que era resultado de uma invasão. O saneamento básico era mais precário e a maioria das casas, de madeira. Dávamos alguns passos e um motel cor de vinho surgia no horizonte. Não tínhamos ideia do que realmente se tratava, nem o motivo pelo qual sempre tinham mulheres próximas à entrada. Ao lado, ficava uma loja de materiais de construção onde mamãe comprou muito do que se tornou a nossa casa. O dono era um senhor barrigudo, mas muito simpático.

Avistávamos, então, o Sest Senat, um prédio branco, com um grande estacionamento. Era um clube onde aconteciam cursos e treinamentos, normalmente voltados para funcionários rodoviários. Eu ficava imaginando se algum dia eu poderia nadar naquela piscina que tantos falavam, mas que nunca havia visitado. Nesse ponto, já não tinha mais conversa, de tão cansadas que ficávamos; economizávamos energia.

Nesse trecho, praticamente não tinham calçadas, e dividíamos espaço com as lotações que faziam transporte de pessoas nas ruas. Em sua maioria eram da marca Kombi, quase sempre irregulares, que ziguezagueavam disputando clientes. Entrando na rua da Igreja São Benedito, lembrávamos da nossa antiga casa que ficava um pouco mais abaixo, saudosas dos momentos que passamos lá. Já era noite, mais ou menos uma hora e meia depois de iniciarmos nossa viagem e finalmente descíamos a ladeira que nos levava a nossa pequena casa de tijolos desnudos, onde a mamãe e o Isaac (nosso irmão caçula) nos esperavam. De longe mamãe gritava: Demoraram hoje hein! Mal sabia ela...

Até hoje, esse permanece sendo um segredo nosso. Não que não é que possamos revelar agora, mas sim, que nunca mais falamos do assunto. Às vezes, fico na dúvida se realmente aconteceu ou se foi apenas um delírio meu. Talvez isso aconteça por estar tão longe da minha realidade atual, em termos de tempo e de contexto mesmo. É como fosse em outra vida.
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