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Num instante, tudo e nada mudou

Crônica de Raifran Monteiro
Estudante do 7º período do curso de Jornalismo da Faculdade Martha Falcão
Publicado em 04 de junho de 2020
Imagem: Carta Maior
O dia costumava iniciar às seis da manhã, quando o som da buzina de um navio antigo me acordava. Bem que eu queria que fosse um cruzeiro ou algo parecido. Seria um sonho acordar com a brisa do mar e uma longa lista do que não precisaria fazer naquele dia. Mas não, infelizmente era apenas o toque do meu despertador me lembrando que estava na hora de ir trabalhar. Fetiche por navios? Não. Este era um dos sons mais altos que havia entre as opções no meu celular – meu sono é pesado e não poderia correr o risco de acordar atrasado.

Já era certo, eu tinha trinta minutos para aceitar que eu precisava me arrumar, mastigar alguma coisa e correr em direção à parada de ônibus. Nem mais, nem menos, às seis e meia o ônibus passava, numa pressa como alguém que perdeu o horário de ir para o trabalho. Ora, mas esse nem era o caso do motorista, pois ele já estava trabalhando. Nunca entendi tanta agonia. Essa é só uma das dúvidas que eu tenho a respeito da profissão. A outra é qual ônibus que o motorista do dia pega para ir trabalhar e guiar o primeiro ônibus do dia, se ele é o primeiro? Deu pra entender o paradoxo?

Eu até tinha vontade de cumprimentar o motora das seis e meia ao entrar no ônibus, mas sua face não era muito amigável e eu tinha medo de levar um vácuo e passar estresse logo pela manhã. Então, só girava a catraca e buscava por um lugar para me sentar. Eu até diria que achar um lugar vago era como ganhar na loteria, mas eu nunca ganhei na loteria, então estaria mentindo. Mas era um alívio quando conseguia pelo menos o assento, já que no ônibus seguinte ao que eu pegava, o maior desafio era conseguir entrar. Sentar já nem fazia tanta diferença assim.

Ao chegar no terminal de integração, se eu estivesse dormindo acordado, tinha que acordar pra valer logo, pois aquele ambiente é sombrio e cheio de armadilhas. Pra começar, você precisa ter em mente que nunca pode ser o último a descer, porque as pessoas de fora vão te empurrar de volta pra dentro, na pressa de conseguir um assento para seguir viagem. Quando lembro disso, me pergunto se a moral da vida está basicamente em conseguir sentar no ônibus. Pela ignorância das pessoas, parece que sim.

Não vejo o terminal apenas como um lugar de transição de um ônibus para o outro, mas como uma escola para a vida, se você parar para observar, é claro. E era isso que eu fazia naqueles eternos minutos esperando pelo ônibus – observava as pessoas. Me lembro bem do moço vendendo jornal que nunca vi ninguém comprar, o discurso decorado do vendedor de salgado e os espertinhos posicionados como um leões que observam suas presas. Nesse caso, os predadores não queriam carne, mas relógios, celulares, dinheiro e tudo o que pode ser vendido por alguns trocados.

Naquela monotonia diária, vinha novamente a mesma pergunta: a vida é somente isso que eu estou vivendo? Onde eu a devolvo? Ninguém me escutava, nem me respondia. Normal, já que eu não externalizava qualquer palavra. E assim, tudo isso que agora conto ficava só em minha mente. Se ficava com os olhos fitos e esbugalhados como quando estamos pensando, logo me despertava. Era alguém gritando, sinalizando que o ônibus estava por vir. “Ufa! Consegui entrar”, dizia eu, com os braços para cima, tentando me segurar sem poder fazer qualquer movimento pois, como previsto, o ônibus estava lotado.

Em direção ao trabalho, eu orava em silêncio para que não houvesse congestionamento no caminho. Afinal, só Deus pra fazer um milagre naquele momento e o meu desejo se realizar. Pensando bem, eu tinha certeza que o trânsito iria estar carregado, o que já era de costume. Mas como todo mundo que se deixa levar pela imaginação, eu ponderava na possibilidade de que algo inesperado pudesse acontecer. Sei lá, vai que de repente várias pessoas decidem não ir trabalhar ou estudar só pra eu poder chegar mais cedo no trabalho naquele dia, pensava eu, morto de iludido.

Tudo bem, eu não chegava mais cedo no trabalho, mas pelo menos chegava. E assim começava um longo dia de planejamentos, ideias, muito café e água. Isso seguia até às seis e meia da noite, que era quando eu desligava o computador e colocava meus pertences em uma pequena bolsa cinza, importada da China. Não sou muito chegado a esse país, mas amo as coisas que eles fazem. Pena que a vida deles é monótona igual a minha, com a diferença de algumas horas a mais na carga horária de trabalho semanal.

Enfim, a essa altura já perdi alguns minutos, agora tenho menos de meia hora pra chegar na faculdade. A boa notícia é que ela fica relativamente próxima ao trabalho. A má é que um outro congestionamento me espera. Mas tudo bem, talvez eu ainda consiga chegar antes que os outros colegas, que estão passando pela mesma labuta, cheguem. Nesse instante, vejo que o alívio da vida é lembrar que você não está sozinho neste barco.

Tic, tac, tic, tac. Se tivesse um relógio de parede na minha sala de aula, essa seria a trilha sonora perfeita da série da minha vida. Ainda não pensei em um nome bacana pra ela, mas posso adiantar que já estou na sétima temporada. Os episódios são quase sempre parecidos, no final deles aparece a professora encerrando a aula e eu indo pra parada esperar um ônibus que passa a cada uma hora e meia. Digamos que as cenas dos créditos são os longos sessenta minutos de um grande percurso até em casa.

Tudo sempre foi meio sofrido pra mim, mas sempre tentei ver a vida com bons olhos. Afinal, a agonia no ônibus era algo passageiro, qualquer dia desses estaria contando essas histórias e sorrindo. Só não imaginava que ia ser tão depressa assim e nem nessa situação. No exato momento que escrevo esta crônica, fazem 50 dias que estou em isolamento social. Tirei um dia da contagem porque tive que cortar meu cabelo e não arrisquei em fazê-lo by myself. Depois disso, o mais longe que eu fui foi no Teatro Amazonas, num tour 360° feito pela internet disponibilizado pelo Governo.

Muitas coisas mudaram nesses dias, e já não tenho tantas histórias pra contar agora, por isso dediquei a maior parte do tempo lembrando de como a vida era antes dessa pandemia. A buzina do navio ainda me acorda, mas não tem motorista para eu pensar se dou um bom dia ou não. O trabalho está a um passo de distância, onde deixo meu laptop. Já para ir à faculdade, não tem trânsito, não tem sequer um intervalo. Durmo, trabalho e estudo no mesmo lugar. E eu, tolo, pensava que a monotonia estava na vida anterior, mas cheguei à conclusão de que não era bem isso.
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