A luta começa logo cedo, quando você tem que se acordar três horas antes do horário de estar no trabalho para conseguir a sorte de não se atrasar. Antes do dia realmente começar, só consigo pensar no 680; é ridículo ter que dizer, mas o prosseguir da minha vida depende dele.
A saga começa perto de casa, na parada de ônibus. É até cômodo para o desafio que estou prestes a encarar, pois encontrar um assento vazio às seis da manhã para poder contemplar a “vista” é o maior desafio que tenho no meu dia. Sim! Vocês entenderão o quão trágico é depois. Já imaginaram ou vivenciaram ter que entrar em um ônibus que vai percorrer quase duas horas de viagem e não ter onde sentar? É triste, digamos até devastador. Além de ir em pé, somos amassados, sem poder respirar direito. Mais doloroso ainda é saber que depois de todo sofrimento e tempo perdido, o êxito não estará completo. E, esses pensamentos à mil são todos pela manhã.
Mas deixa eu contar sobre esse meu complicado trajeto. Viajar no 680 é um experimento antropológico, pois quem nunca teve que ir na Zona Leste e precisou dele? Chego a ficar tonta só de lembrar. O trajeto consiste em um abismo de classe econômica, e só quem pega são aqueles que precisam sair da zona Leste e ir a zona Sul e não tem outra forma de fazer isso. O ônibus em si é bem caótico, sujo, quebrado e consequentemente barulhento; saímos dele achando que teremos um grave problema auditivo. O mais triste é saber que o problema não é apenas no 680, mas em várias outras linhas.
No decorrer da rota, é como se estivéssemos indo de uma civilização a outra. A minha é a do Tancredo Neves. Nesse ponto, o 680 passa na ida e na volta em uma rua bem conhecida, a Rua Iraque. Nela existe uma ladeira muito grande que até parece uma montanha russa. Dá um calafrio quando está descendo, é horrível por conta do barulho que aumenta ao descer o ladeirão. Ah, eu ia esquecendo do Baratão da Carne. Não importa o horário, sempre na frente desse supermercado vai existir trânsito. Acredito que esses podem ser considerados os pontos de referência para quem nunca veio ao bairro.
Nesse ponto do trajeto, o ônibus já está completamente lotado, e nele existem pessoas de todos os tipos. Todos os dias, embarcando no mesmo horário consigo ver os mesmos rostos, que posso chamar de “conhecidos”, com as mesmas expressões, seja indo ao trabalho, escola ou faculdade. Não sei se posso falar assim, mas as pessoas são peculiares aqui no bairro. Tem algo único no jeito que eles falam, se vestem e usam o celular sem fone para ouvir vários louvores nas alturas em plena seis da manhã. Por que alguém coloca uma música tão alta, sendo que todos estão visivelmente perturbados com o barulho? Dessa vez, a cobradora pede para a mulher desligar a música, e assim continuo meu trajeto tentando manter a paz.
Mas tentar não é conseguir. A maioria dos ônibus que vão para a Zona Leste não tem uma estrutura boa e sempre quebram no meio da viagem, tanto que desde que comecei a pegar o 680, ele quebrou sete vezes, todas na volta para casa. Por enquanto, prefiro não pensar nessa possibilidade, já que avistei uma cadeira vazia e vou poder descansar um pouco. Estou quase chegando na metade da minha viagem e sinto tanta dor na perna por não estar me mexendo! Mal consigo perceber que ninguém brigou pelo assento, e só depois entendo o motivo: o sol está radiante no banco. Esse é um dos dilemas, que o pobre amazonense tem que enfrentar: saber para qual lado do ônibus o sol vai chegar, porque sim, ele é muito forte. Mesmo assim vou arriscar, não posso deixar escapar essa oportunidade pela manhã.
O 680 tem uma rota diferente dos demais ônibus: assim que ele sai do bairro Armando Mendes, onde as ruas são estreitas, ele entra no Distrito Industrial, onde existem basicamente fábricas, via largas, mas esburacadas, e muitos ônibus de rota das empresas. Viajo a pensar se ali dentro as pessoas são tratadas como máquinas. Talvez. Não muito diferente de outros empregos.
Nessa parte do trajeto, é quando o ônibus demora um pouco mais para andar por conta do trânsito que é causado pelas rotas das fábricas. Sigo pensando que eu poderia estar dentro de uma delas, sentada naquelas poltronas acolchoadas, com ar-condicionado, indo para o trabalho, e não aqui dentro do 680 lotado, com homens tentando nos apalpar e ainda tentando parecer natural.
Quero aproveitar e contar uma história que presenciei. Nela, uma moça foi assediada dentro desse mesmo ônibus. É incrível como nesses casos as pessoas sem perceber começam a se perguntar se realmente aconteceu, mesmo a vítima expondo. Os olhares perplexos e enojados que lançavam para a vítima, enquanto o acusado tenta de toda maneira chamá-la de louca. Foi isso que aconteceu: quando a moça tentou reagir dando um tapa no assediador e gritou para todos ouvirem que ele estava passando a mão nela. Depois de tudo, os passageiros começaram um certo “motim” para agredi-lo. O motorista só parou o ônibus e o mandou descer. Foi um misto de raiva com vergonha pelo fato de uma mulher ter que passar por isso todos os dias e ainda sentir-se culpada.
Essa foi uma das histórias que presenciei entre tantas nas minhas idas e vindas no 680. Mas onde estávamos mesmo? Nem sei mais! Enquanto meu destino não chega, continuo com os pensamentos a mil, observando tudo ao meu redor. Percebo que continuo no Distrito, até porque essa parte é a mais extensa do meu trajeto. Prestando atenção, parece que já conheço tudo por aqui. Antes, quando eu não pegava essa rota frequentemente, vez ou outra passava por aqui e ficava com um certo medo, principalmente à noite, quando não se tem mais a iluminação do dia. As ruas quase não postes, e os que existem ali estão caindo aos pedaços. Consequentemente, não havia nenhuma segurança, já que, aliado a isso, não se via nenhum policiamento na área.
Alguns amigos passageiros costumam descer no Distrito e entrar pelas ruelas onde ficam algumas fábricas, já que algumas empresas não disponibilizam rotas. Mesmo quase às sete da manhã, andam depressa, com medo de algo. Ninguém sabe ao certo quem entra e quem sai dos ônibus, por isso sempre existe uma tensão no ar.
Mil pensamentos já passaram pela minha cabeça nessa altura do trajeto, mas mesmo com tudo isso, ainda não consegui me acostumar com o sol escaldante no meu assento. Porém, sigo sentada porque é melhor do que ser esmagada ou assediada. Já são quase sete e meia e começo ver o Terminal 2, que fica na Cachoeirinha. Aquela movimentação de pessoas saindo dos ônibus me deixa euforicamente alegre por instantes, até perceber que a minha viagem conturbada continuará. Dali, ainda vou pegar outro ônibus para chegar na faculdade.