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O cano do fuzil que as crianças brincam

Crônica de João Pedro Auzier
Estudante do 7º período do curso de Jornalismo da Faculdade Martha Falcão
Publicado em 11 de junho de 2020
Foto: Reprodução- Casa de capoeira Angola Malta
Durante nove meses, eu acordava cedo todos os dias no Rio de Janeiro e tomava café para ir ao curso de violão na Siqueira Campos. No trajeto para o metrô, sempre via crianças em situação de rua, muitas delas cheirando cola, semi-despidas e esfomeadas. Olho aquela situação e percebo que talvez aquelas substâncias são as únicas fontes de prazer dos menores de idade.

Já em algumas esquinas, percebia crianças mais bem vestidas usando pochetes, e compreendi que se tratavam de pequenos serviçais do narcotráfico. Suas vidas, ruínas de um futuro desconstruído. Poderíamos achar que essas crianças são inexistentes, pois quando nós nos pomos a dormir, elas acordam para trabalhar. Tudo o que resta são os menores nas ruas, o asfalto quente acolhendo e queimando a pele, vencidos pelas drogas embaixo do viaduto, olhando para a lua ou o sol, perdidas no sistema solar. É um contraponto cinza da colorida e bela paisagem da cidade maravilhosa do cartão postal.

Onde nós erramos? Quando foi que começamos a ignorar os estudos base que poderiam ser a saída para crianças em tal condição? Me pergunto isso sempre, e, nesse trajeto, que no início eu achava que ia ser perene, eu imaginava que ninguém, absolutamente ninguém se importava com crianças sujas de terra ou presas injustamente por estarem, de certa forma, “erradas" no jeito de levar sustento para dentro de casa. 

Afinal, o sistema ajuda? Dentre essas crianças que virão a ser detidas, o estado consegue ressocializá-las quando elas saírem das cadeias para menores? Provavelmente não; ele só ganha um título, o de ex-detento. O estado abandona, não dá saneamento básico, não fornece água ou educação, mas adora oprimi-las e, principalmente, abater aqueles que não seguem um padrão.

Outra vez, voltando da aula, desci na estação Botafogo e fiz o mesmo trajeto. Foi quando vi a abordagem da PM com uma dessas crianças, que mais parecem anjos arrancados do seio materno obrigados a se submeter a esse mundo cruel. Os policiais davam tapas, socos e algemavam suas pequenas mãos para trás. Junto com tantas dores, os meninos ainda eram obrigados a responder indagações absurdas.

Uma dor que foi me devastando durante o trajeto para a minha casa era ver e sentir que muitos apanhavam por simplesmente não estarem com a vestimenta coerente com o bairro nobre da Zona Sul. E existe um padrão de traje, aliás? Infelizmente parece que sim. Porém, para mim a pior parte é a hora da janta, saber que eu não posso partilhar aquela sopa ou aquele pão com todos os jovens que, como eu, buscam também um lugar ao sol, que desejam mudar sua vida para melhor, e que, no fundo, talvez apenas desejem uma oportunidade do mercado de trabalho. Sonhos simples, mas que parecem impossíveis.

 Muitas das vezes, esses jovens são moradores ali da favela Santa Martha. É um lugar exuberante, que saudoso Michael Jackson apresentou ao mundo em um videoclipe, onde a visão do pôr do sol carioca é a coisa mais linda e os bailes funk alegram os finais de semana. Mas infelizmente existem alguns tiroteios ali, que eu ainda podia ouvir lá de baixo. Vizinhos mais antigos comentaram que a polícia já controla o morro, mas convenhamos né, nesses tempos tenebrosos quem confia piamente na polícia?

No caminho para a estação, eu sempre ia ouvindo canções de Milton Nascimento que me remetiam a reflexões sobre o que via. Uma delas era: “Esses anjos não têm família?”. Embora isso tudo faça parte do cotidiano, às vezes era melhor nem ouvir música ou ler notícias de uma guerra particular, porque essas tristezas acontecem todos os dias.

Imagino que a pior parte do ano para essas crianças são as épocas de dia das mães ou dos pais. Muitos não tem de quem receber afeto, não recebem um baraço ou uma ligação, absolutamente nada. A única coisa que podem fazer é ficar em par com a solidão. Isso tudo passava pela minha cabeça ao andar todos os dias naquele caminho, carregando meu violão para as aulas. Confesso que nos dias chuvosos eu praticamente murmurava de dó, imagina só esses jovens ali na labuta eterna, em busca do pão de cada dia, mas da pior forma possível. Já não sabem a quem clamar: Jeová, Anúbis ou Buda? Suas faces declamam a mim, como num cinema mudo, um olhar para dizer tudo, e praticamente pareciam falar o quanto essa dor machuca.

Na Sétima Arte, são maravilhosas aquelas cenas em que a mãe leva o filho para casa da maternidade. Mas as cenas vividas por vários daqueles meninos e meninas não eram assim. Muitos sim foram abandonados, esquecidos, explorados. Muitas das vezes precisam sair de casa por sofrerem todos os tipos de abuso – sabe-se lá quem é que tem coragem de fazer isso.

Isso, no meu âmago, é uma facada daquelas que depois que finca, a pessoa vem e machuca mais, tira a faca e a roda dentro de mim de novo para me fazer sofrer mais. Essas situações afetam o meu epicentro e até hoje não me conformo de ainda voltar para o Rio de Janeiro nas férias e perceber que são outros pequenos rostos ali, dando sequência naquela vida triste porque simplesmente ninguém se importa em ajudar. Ninguém estende a mão para esses jovens.

Esse filme se repetirá para sempre? Ninguém lembra da chacina da candelária? Nesse trajeto, eu reflito no vidro do metrô e peço em pensamento que as autoridades ou os deuses ajudem a quem sente fome e a quem implora por uma oportunidade para que nós possamos dar um basta a isso tudo e dizer um dia que, enfim, aprendemos a respeitar e amar o próximo como a nós mesmos.
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