Idosos em risco e a subjetividade do isolamento social
Ficar em casa durante a pandemia é privilégio, mesmo entre os mais velhos, mas esse cuidado não vem sem efeitos psicológicos a esse grupo.
Reportagem de Milena Laborda
Estudante do 5º período do curso de Jornalismo da Faculdade Martha Falcão
Publicado em 19 de junho de 2020
Foto: Reprodução - Pixabay
‒ Filha acorda, a sua avó sumiu!
Era uma tranquila manhã de sábado quando Ana, minha mãe, entrou no meu quarto falando essa frase e tentou me acordar dando batidinhas no meu braço. Não compreendendo muito bem o que ela estava dizendo, tentei me esforçar para abrir os olhos, mas só respondi com um resmungo e virei para o outro lado da cama. Percebendo que bater no meu braço não adiantou muito, ela começou a me chacoalhar:
‒ Acorda pelo amor de Deus! Já liguei pra todo mundo e ninguém sabe pra onde ela foi ‒ falou, com a voz embargada.
Minha mãe se referia à vovó Dinha, de 70 anos, que estava isolada em casa há dois meses, mas tinha acabado de quebrar o isolamento, indo sabe-se Deus para onde. Filhos, netos, bisnetos, ninguém sabia onde ela estava. Há uns 4 meses ela sempre saía sem avisar, voltava quando queria e todo mundo achava normal. Com certeza isso não seria um problema se não estivéssemos vivendo em meio a pandemia do Coronavírus e minha avó não se enquadrasse no que a Organização Mundial de Saúde (OMS) classifica como grupo de risco.
Aproximadamente onze da manhã ela chegou em casa como se nada tivesse acontecido. Usava máscara no rosto, calçava um tênis de fazer exercícios e estava completamente suada. Ao abrir a porta, nos olhou como uma criança olha para os pais depois de fazer besteira, com medo da reprovação.
‒ Fui caminhar um pouquinho, já estava de saco cheio ‒ falou rindo, ciente da preocupação que causou.
‒ Mas mãe, você não pode fazer isso, precisa avisar. Todo mundo ficou preocupado ‒ argumentou sua filha, com paciência.
‒ Se eu avisasse, vocês me fariam mudar de ideia ‒ reiterou vovó, defensiva.
Eu me abstive de emitir opiniões. Conhecendo minha avó como conheço, já sabia que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde. Sem julgamentos, afinal, cada um conhece o seu limite. Minha mãe é a que fica mais nervosa, enquanto eu e meu pai tentamos acalmar os ânimos. O medo não é que minha avó saia de casa, longe de nós privá-la disso, ela tem total autonomia e sabe o que é certo e o que é errado. O maior medo é que ela se exponha demais e acabe sendo infectada.
‒ Minha mãe sempre amou sair. Natação, caminhadas, encontro com as amigas... quase não parava em casa. Saía quando queria, voltava quando queria e estava tudo bem. Agora não é mais assim e isso tira ela do sério ‒ conta minha mãe.
Parece exagerada essa superproteção, mas não é. De acordo com dados do IBGE, o país tem mais de 30 milhões de idosos com idade acima dos 60 anos. Para você ter uma ideia, em Manacapuru, município do interior do Amazonas bem próximo à capital do Estado, de 17 pacientes que morreram no fim do mês de abril, 15 tinham idade mínima de 60 anos. Segundo o boletim epidemiológico do município, os números entre os mais velhos, que correspondem a 90% dos óbitos registrados, diz muito sobre a falta de proteção e cuidado que as famílias têm com os idosos. Mesmo sendo dados do interior, você consegue perceber o quanto esse vírus pode ser letal para essas pessoas? Então é completamente compreensível a preocupação com relação à saúde deles nesse período de pandemia. Não é segurança demais, exagero demais, proteção demais. É o mínimo que nós podemos fazer.
Mas nem todos os idosos têm o privilégio de ficar em casa, isolados socialmente como a minha avó, até que tudo isso passe. Pelo contrário, muitos são os mantenedores de suas famílias e ainda estão trabalhando, se expondo em supermercados, bancos e farmácias para comprar mantimentos, pagar contas e fazer os serviços essenciais que uma família precisa.
Foto: Acervo Pessoal/Milena Laborda
Em 2018, um levantamento realizado em todas as capitais pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) mostrou que 43% dos brasileiros acima de 60 anos são os principais responsáveis pelo pagamento de contas e despesas da casa. Entre os homens esse percentual chega a ser de 53%, mas de modo geral, 91% dos idosos no Brasil contribuem para o orçamento da família. Em 25% dos casos, a quantia que os demais membros da casa desembolsam para ajudar com as despesas, é a mesma contribuição dada pelos idosos que moram na mesma residência. Triste, mas é a realidade, pois quando jovens, sempre imaginamos que a terceira idade será um momento de descanso e viagens, aproveitando a tão merecida aposentaria após décadas de trabalho.
Carlito Cadena faz parte dessa estatística. Microempreendedor e aposentado, ele é o mantenedor da família há anos, e com o aumento de casos do novo coronavírus na cidade de Manaus, ele se preocupa com sua saúde ao passo que se esforça para proteger e sustentar a casa. Alguns dias atrás, falando com Keren Melo, sua filha, ela me contou que seu pai não está isolado socialmente. Na família Cadena de Melo, que é composta por Keren, sua irmã, sua mãe e o idoso de 76 anos, ele é o único que está saindo de casa.
‒ Queria muito sair no lugar dele, mas não tem como. Eu sou deficiente, minha irmã é menor de idade e ele prefere fazer as compras, pagar as contas e tudo o mais do que deixar que minha mãe vá. E não tem discussão, ele que decidiu e bateu o martelo ‒ conta Keren, que preferia que a mãe estivesse saindo ao invés do pai.
Antes da quarentena, seu Carlito já fazia todos os serviços que demandam sair de casa, então sua rotina está muito parecida com a de antes. Ele continua acordando todos os dias bem cedinho para comprar pão antes que a panificadora fique lotada e seguindo para pagar as contas e comprar mantimentos no supermercado. Porém, algumas coisinhas mudaram não só na vida dele, mas na vida de muitas pessoas, como a máscara, que já virou acessório, o tubinho de álcool em gel e o esforço para manter distância dos outros enquanto está nas filas do banco, da farmácia, da padaria ou do supermercado. Manter distância, inclusive, é uma grande dificuldade que Carlito percebe que as pessoas têm. A impressão dele é que, às vezes, os outros não se importam muito com o tal distanciamento.
‒ Teve um dia que fui ao mercado e as pessoas não estavam mantendo o distanciamento. Fiquei nervoso e logo coloquei uma máscara em cima da outra. Talvez duas protejam mais do que uma, né? ‒ brinca.
Além de sair todos os dias, Carlito ainda administra a pousada da família, que precisou ser reaberta recentemente porque o fechamento do estabelecimento já estava trazendo prejuízos econômicos. Ele é só mais um entre milhares de idosos que viram suas rendas serem prejudicadas com o fechamento de seus negócios. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) trimestral do IBGE constatou que 4,7 milhões de idosos atuam no setor de serviços, atividades comerciais ou que necessitam de contato entre pessoas, e assim, Carlito entra para mais uma estatística. A Pousada Uirapuru, seu estabelecimento, está funcionando a todo vapor, hospedando hoje apenas três pessoas, mas que conseguem ajudar financeiramente com o valor pago pelas diárias. A família é contra a reabertura do local e se veem muito preocupados todas as vezes que o idoso sai de casa, ficando tranquilos apenas quando ele chega.
Foto: Acervo Pessoal/Keren Melo
‒ Eu tentei fechar, cumprir as regras direitinho, mas não deu, precisei reabrir. A gente precisa de dinheiro para pagar as contas, minha filha ‒ conta ele, relutante, como se não estivesse feliz com o que está dizendo.
Para não ser infectado e não infectar a mulher e as filhas, Carlito tenta ser bem prudente e cuidadoso. Seguindo as recomendações do Ministério da Saúde, ele mantém a higiene do corpo e das mãos ao sair e ao chegar em casa, mas nem sempre consegue seguir a rotina e acaba esquecendo de fazer algumas das coisas. Reflexos de alguém que ainda não se acostumou com o que parece ser o novo normal.
‒ A gente tem que ficar lembrando toda hora, "já lavou a mão? Já colocou a máscara de molho?" Porque às vezes ele realmente esquece, mas não é sempre ‒ confirma Keren, que costuma puxar a orelha do pai em relação a isso. Porém, é comum que coisas assim aconteçam, afinal, tudo mudou de uma hora pra outra e é difícil se acostumar com a nova rotina.
Todos os dias, os idosos são bombardeados com um turbilhão de informações na televisão, nos grupos dos aplicativos de mensagens, na internet. Há tantas coisas acontecendo, tantas informações tristes sendo propagadas e há, ainda, o risco de serem infectados. Quando tudo isso se mistura, contribui para que mudanças de humor e estresse sejam notados com frequência dentre esse grupo. Carlito e Dinha são muito parecidos com relação a isso e, tanto o patriarca da família Cadena quanto a minha avó estão mais irritados e mais mal humorados do que antes. Cabe a nós, enquanto parentes, entendê-los e respeitá-los nesse momento.
‒ Eu me sinto angustiada, não queria estar passando por isso ‒ confessa minha avó que, sempre muito bem humorada e alegre, agora costuma se irritar por qualquer coisa, chora com muita facilidade e está dormindo mais que o normal.
Para evitar a ociosidade, já tentamos de tudo para distraí-la: maratona de filmes e séries, montagem de quebra cabeças, pintura de mandalas, aprender receitas novas. Mas não deu certo. Pelo visto, não há nada que ela goste mais do que a boa e velha aglomeração. Como faz pra segurar em casa um idoso com personalidade forte, que tem uma vida ativa desde sempre e odeia ficar parado?
Carlito não titubeia ao falar sobre o que está sentindo em relação ao momento que está passando. Para ele, nada se compara ao que está vivendo e ele sente muito medo. Medo por si e pela sua família que, sendo dependente dele, não terá a quem recorrer caso o pior aconteça. Mas apesar da preocupação e ansiedade, ele mantém a esperança de que dias melhores virão.
‒ É meio assim, qual a palavra? Desesperador. Estou desesperado. Tá demorando muito pra passar, não tem nem cura e o número de mortes só aumenta. Eu nunca vi uma coisa dessas na minha vida e olha que eu já vivi muito. Mas vai passar, tenho fé em Deus que vai passar! ‒ declara Carlito, emocionado, repetindo a última frase como se quisesse convencer a si mesmo.
É importante ficar atento a essas mudanças de humor repentinas e também a momentos de tristeza frequentes. Essas sensações podem baixar a imunidade do idoso, deixando-os mais vulneráveis e mais suscetíveis de serem infectados pelo vírus. Com o bombardeio de informações, muitas notícias ruins, fake news e a indiferença de muitas pessoas, os cuidados precisam ser redobrados para evitar que eles se sintam inferiorizados ou negligenciados de alguma forma.
Assim, a pandemia do Covid-19 acabou servindo para ressignificar a relação que temos com os idosos e a forma como os vemos. A rotina de quarentena, isolamento social, cuidados frequentes com a higiene, manter um metro de distância e tudo o mais não são fáceis. Irritam, preocupam e causam ansiedade. Mas acima de tudo, estando em confinamento ou não, como o Seu Carlito, os idosos precisam sentir que são queridos, respeitados e que podem contar com ajuda para o que precisarem, seja se oferecendo para ir ao supermercado em seu lugar, seja compreendendo o momento e respeitando a individualidade de cada um deles. Cada um ajuda como pode, o importante é entender que o envelhecimento é um processo natural pelo qual também passaremos e nessa fase da vida, todos merecem amparo, ajuda e segurança.
Eles não aguentam mais ficar em casa? Não julgue. Estão irritados? Não julgue. Escolheram sair de casa para fazer os serviços básicos da família? Também não julgue. Recorra a atitudes que os ajudem a não se sentirem tristes ou prejudicados de alguma forma pelo isolamento ou pela falta dele. Não é porque estão mais velhos (e, teoricamente, mais próximos do fim de suas vidas) que não merecem cuidado e zelo. Jamais podemos escolher entre a vida de um jovem ou a de um idoso, como sugeriu o ex-ministro da saúde, Nelson Teich, naquele controverso
vídeo
que circulou nas redes sociais.
Ser idoso em tempos de Covid-19 é um risco, mas suas vidas não são descartáveis e valem tanto quanto a nossa. Respeitar e lidar com pessoas mais velhas não deveria ser um fardo, afinal, um dia nós também iremos envelhecer e a morte chegará para todos mais cedo ou mais tarde. Porém, precisa ser por coronavírus?