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Gripezinha, conspiração comunista ou culpa da Globo: as fake news da pandemia

Reportagem de Marcela Ladislau e Matheus Monteiro 
Estudantes do 7º período do curso de Jornalismo da Faculdade Martha Falcão
Publicado em 18 de junho de 2020
Foto: Michael Dantas
17 de novembro do nem tão longínquo ano de 2019 que chegava ao fim. A economia mundial estava incerta e desestabilizada. Por sua vez, o Brasil se encontrava em uma crise tanto política quanto econômica. A chegada do próximo ano seria o reset que tantos esperavam. Mal sabíamos que o nosso maior desafio de 2020 já tinha nascido nesse dia.

Acredita-se que foi nessa data que o “Paciente 0”, ou seja, a primeira pessoa do mundo contraiu a Covid-19 no mundo, se infectou. Ele seria um senhor de 55 anos de idade que reside na província de Hubei, na China. A partir daí, a propagação da doença se deu lentamente. Por alguns meses ainda, boa parte do mundo se considerava a salvo da doença. Foi aí que aconteceu.

Devido à grande população chinesa e o constante turismo no país, a doença rapidamente chegou aos quatro cantos do globo. E assim, em março de 2020, foi decretada a Pandemia Mundial do Novo Coronavírus. Países tiveram suas fronteiras fechadas, comércios pararam de funcionar, eventos internacionais foram cancelados, a circulação de pessoas nas ruas diminuiu drasticamente, e milhões delas ainda assim testaram positivo para a doença, com muitas perdendo a batalha para a doença.

Mas é só uma “gripezinha”, não é?

“Gripezinha” foi o termo foi utilizado pelo presidente Jair Bolsonaro em um pronunciamento oficial em rede aberta no dia 24 de março de 2020 para se referir ao novo Coronavírus. Ele o repetiu posteriormente em uma coletiva de imprensa durante a R7, nos Estados Unidos. É irônico pensar que um líder de um país negue os fatos consolidados pela comunidade científica para confiar apenas em sua opinião pessoal, o que chocou parte da população. Afinal, ele estava na contramão do que concluiu todas as pesquisas sobre a doença em outros países, além da própria Organização Mundial de Saúde (OMS). Ao mesmo, esse foi o início de uma onda de desinformação alimentada por Fake News por todo o país. De certa maneira, podemos dizer que o presidente foi o “paciente 0” das teorias da conspiração sobre o novo Coronavírus no Brasil. 

E o que isso gerou em Manaus?

Não é fácil chegar em Manaus. A capital é incrustada na floresta amazônica, e a via fluvial e aérea ainda são as melhores opções para vir para cá. Mas as fake News não precisam comprar passagem; basta apenas ter acesso à internet, e isso nós temos. Na cidade, que é hoje um dos epicentros da Covid-19 com números superiores a 50 mil infectados e mais de dois mil mortos, os comunicadores têm batalhado contra as fake News. Uma luta na qual a informação (ou melhor, a falta dela) pode custar a vida. 

Andrezza Lifsitch, editora do G1 Amazonas, entende bem o que queremos dizer com isso. Quando abordada sobre os desafios de cobrir a pandemia do Coronavírus e os encaminhamentos editoriais que ela tem visto como necessários, foi enfática na importância do jornalismo como filtro de informações confiáveis.

一 Fazer jus à pauta super importante que está à nossa frente é, de certa forma, aproveitar para cobrir o assunto de todas as maneiras possíveis e sempre atualizar a população. Eu acho que esse é o papel do jornalismo para a sociedade; acima de tudo, servir as pessoas com informação. 

Mas em quem acreditar? Por mais que a opinião do Presidente Bolsonaro trate a Covid-19 como uma “gripezinha”, os fatos não mudam. O Brasil já é o epicentro da doença na América Latina (710.887 infectados e 37.312 mortos até o início de junho) e está à beira de se tornar o mundial, com a previsão de superar pouco a pouco os Estados Unidos (1.999.671 infectados e 112.579 mortos até o mesmo período). A revista médica britânica The Lancet, uma das mais conceituadas sobre o assunto, atribui esse crescimento à má gestão do presidente em relação ao vírus, considerando-o “a maior ameaça” para essa luta. Negligenciar cientistas, a OMS e os próprios infectologistas, que são os mais próximos da doença, acarreta apenas um risco maior à sociedade.

O Coronavírus é uma invenção?

Quando fiz essa pergunta à infectologista Christiane Takeda, a reação de surpresa foi inegável. Ela pareceu assustada, mas em seguida soltou uma gargalhada breve. Porém, essa é uma dúvida legítima para pessoas que entram em contato com notícias falsas e não têm a capacidade de diferenciar fontes confiáveis de informação daquelas que espalham boatos de propósito. Christiane então esclarece a questão de uma vez por todas.

一 É uma doença que está afetando o mundo desde o ano passado. São milhões de infectados ao redor do globo e milhares de mortes até hoje; então não, não é uma invenção! 

A médica também relata a situação que tem enfrentado diariamente desde o início da crise de saúde em Manaus.

 一 Estamos lutando uma guerra contra um inimigo invisível e por conta disso as vítimas não param de aumentar. Os hospitais estavam na margem do colapso, não havia leito para todo. Eu e muitos outros colegas infectologistas estamos mais ocupados do que nunca, pois são mais vidas em jogo do que podemos arcar.

Em 25 de maio de 2020, o Governador do Amazonas, Wilson Lima, apresentou a proposta de reabertura gradual do comércio no estado do Amazonas. A ideia era começar em ciclos, partindo do dia 1º de junho, seguido pelos dias 15 e 29, e por sua vez tendo a última remessa no dia 6 de julho. De todos os serviços retomados neste período, os únicos deixado de fora foram bares, casas de shows e eventos, assim como escolas e universidades da rede municipal, estadual e federal.

Que inocência por parte do governador acreditar que manauara respeitaria a reabertura gradual. Logo uma população que mal fez o isolamento social (a taxa de obediência foi de aproximadamente 40%), sendo que o indicado pela OMS é pelo menos 70%. Como era de se esperar, o tiro saiu pela culatra. 

Mesmo que os shoppings centers da capital possam administrar a entrada de pessoas e as normas para a segurança, eles não representam a maior onda de movimentação. Já no primeiro dia do retorno no Centro, tudo parecia ter voltado à normalidade: ruas cheias de pessoas, congestionamento, dificuldades para encontrar uma vaga... a área retratava um ambiente que parecia desconhecer a pandemia que ainda assola o mundo. É por isso que a doutora Christiane se mostrou apreensiva com a reabertura na cidade. 

一 Depois de meses, a curva de infectados finalmente começou a baixar em Manaus, mas meu maior medo é essa reabertura tornar tudo que foi feito até agora em vão e a curva voltar a subir.

Entram em cena os comunistas!

Se Christiane se junta ao coro dos cientistas, membros da OMS e todos os especialistas possíveis em saúde, então onde que começou a história de que a doença seria fruto de uma conspiração comunista? Pensando de forma racional, que país em sã consciência criaria um vírus com proporções catastróficas mundiais, infectaria a própria população, deixando milhares de seus cidadãos morrerem? Para muitos teóricos de final de semana e eleitores de Bolsonaro, esse foi o genial plano da China para dar um gás em sua economia. Afinal, chineses são comunistas desumanos, dentro no universo dessa teoria da conspiração. 

Ela, porém, cai por terra por dois fatores. O primeiro é que o vírus não foi criado por nenhuma forma humana. Cientistas americanos descobriram que o novo Coronavírus não tem características de criação em laboratório, de acordo com um grande estudo realizado por pesquisadores do Scripps Research Institute e publicado na revista especializada Nature Medicine. 

O segundo fator que derruba a teoria da conspiração é o fato de que a China não foi favorecida economicamente com a pandemia. Com o início do Coronavírus, o produto interno bruto chinês caiu 6,8% de janeiro a março em relação ao mesmo período do ano passado, a primeira contração no país desde 1976, ano da morte do líder Mao Tsé-tung e do fim da Revolução Cultural. Se esse foi o melhor plano que os chineses bolaram para implantar uma ditadura comunista global, não parece ter dado muito certo até agora.
A justificativa, além de minimizar a doença, seria que o país asiático pretende alavancar sua economia antes dos demais afetados pela doença, dominando-os economicamente e espalhando o socialismo com o intuito de instaurar o utópico comunismo. E pronto: dominação concluída! Quer dizer, só a Nova Zelândia conseguiu se livrar do Coronavírus por enquanto, mas vocês entenderam.

A culpa é da Globo?

Outra teoria da conspiração popular é que o Coronavírus não é nada apenas de, espera um segundo... invenção da Rede Globo. Sim, você não leu errado. Há apoiadores de Bolsonaro que desacreditam a doença e têm atribuído sua existência à Rede Globo de Televisão. O argumento é, mais uma vez, classificar o novo Coronavírus como uma doença comum, e, com isso, todo o “alarde” acerca dela não passa de uma estratégia do “jornalismo corrupto” da rede para derrubar o presidente.

A briga entre Bolsonaro e a Globo não é nova. Já durante as eleições de 2018, o então candidato à presidência atacava a rede televisiva. A situação se agravou com a posse em 2019 e a troca de farpas piorou durante a pandemia. Desde então, governante e eleitores não poupam esforços para atacar o veículo que encaram como inimigo. 

Os argumentos de Bolsonaro e seus apoiadores é que os meios de comunicação, com ênfase na Globo, distorcem as palavras dele e o atacam com fake News. A confusão cresceu de tal forma que ataques físicos aos repórteres da rede se tornaram relativamente comuns.

A dificuldade que essas atitudes da população representam ao jornalistas somam-se às trazidas pela pandemia. Segundo Maria Paula Silva, 21, a Covid-19 foi um “soco no estômago” das pessoas que trabalham com comunicação.
 
一 Jornalismo só é de qualidade quando você presencia os fatos, vai até onde está a informação, e com a Covid não conseguimos fazer isso. Fica o desafio da nossa própria saúde, dos nossos próprios cuidados no meio de uma pandemia para levar a informação que precisamos levar”, relatou a jornalista.

Maria, que trabalha no Amazon Sat, cita que o veículo aborda a Amazônia, mas diariamente compartilha um boletim sobre os casos de Covid-19:

一 Permanecemos trabalhando, seguindo as recomendações de isolamento social, fazendo entrevistas por videoconferência ou recebendo vídeos dos entrevistados. Evitamos assim descumprir as orientações da OMS sem deixar de trazer informação. A gente entende que o espectador está cansado, então tentamos colocar coisas leves de alguma forma [na programação]. Acredito que os veículos de comunicação em geral tem feito um ótimo trabalho, estão de parabéns, porque eu sei que pesa muito no nosso lado humano lidar com a quantidade de Covid-19 em Manaus e a dimensão da doença. Você vê as pessoas morrendo e entrevista vítimas e seus familiares. Mas é esse lado humano que faz a diferença.

A desinformação que mata

Quando abordada sobre as fake News da Pandemia, Maria Paula acredita que a informação salva, ao passo que a desinformação mata. Ela, melhor do que ninguém, sabe bem disso, pois seus pais foram vítimas de notícias falsas e ela acredita que a morte de um deles por Covid-19 está diretamente relacionada à crença em informações vindas de fontes não confiáveis.

一 Eu particularmente tenho um problema muito grande com as fake News porque o meu pai foi vítima dela, pegou Covid-19 e veio a falecer. Como jornalista, isso é muito complicado pra mim, é um assunto muito delicado de se falar. Então sem dúvida nenhuma, o maior inimigo do jornalista nesse momento é a fake News, pois elas não levam só desinformação para as pessoas, mas levam informações completamente erradas e usufruem de um poder que as impede de ficarem bem. Levam-nas à morte.

São tantas fake News absurdas que quando pedimos para que a jornalista citasse uma que a tenha impactado, ela traz um exemplo pessoal.

一 Minha mãe enlouqueceu por achar que chá de Jambú curava a Covid-19 e começou a fazer milhares de chás em casa, tentando se precaver. No final das contas, ela também pegou a doença.

Existe uma quantidade limitada de tempo em nosso dia-a-dia, e consumir milhares de conteúdos sem filtro pode fazer com que as pessoas não passem da manchete ou dos títulos dos links e correntes que surgem na tela do smartphone. Junta-se a isso a facilidade de compartilhamento na web, e esse é o perigo das fake News: elas se espalham como um vírus. Maria Paula explica esse processo.

一 Quando você posta uma fake News, mesmo que esteja falando sobre não acreditar nela, não são todos que vão prestar atenção no comentário, o que ela representa de fato. De dez pessoas que leem, uma pode levar aquilo como verdade absoluta e a gente não sabe o que pode acontecer por causa disso. Pode ser um impacto gigantesco. Minha própria família foi vítima. Não era falta de informação, mas o consumo em excesso dela de forma errada.

Maria Paula comenta ainda sobre ser muito mais fácil acreditar naquilo que se quer do que na verdade. A jornalista avalia que a necessidade de ter certezas é evidente entre as pessoas hoje, o que impulsiona diretamente o caso de amor entre os brasileiros e as fake News. Seus produtores sabem disso e se aproveitam desses detalhes para transmitir informações falsas, manipulando o leitor. É por isso que Maria Paula cita formas que podemos adotar para diminuir a desinformação e combater as fake News: 

一 Se uma notícia não parece ser verdadeira para você, não deixe ela passar. Converse com as pessoas, apoie e incentive-as a pesquisar sobre o assunto e mostre a ela outras matérias sobre o assunto. É importante se cercar de veículos de comunicação de fato confiáveis e que não tenham sempre a mesma opinião que a nossa e pesquisar plataformas que analisam a veracidade das notícias. Uma notícia verdadeira acabará sempre em vários veículos de comunicação.
 
Para quem não acha tão fácil fazer essa identificação, há sites como Detector de Fake News, E-farsas , Fato ou Fake ou Agência Lupa. Eles são especializados no serviço fact-checking, que investigar a veracidade de notícias na web.

Intolerância e crise

Quando perguntamos a Maria Paula sobre a situação da imprensa atualmente, ela discordou que haja uma maior valorização por causa da pandemia, como alguns chegaram a acreditar. Citou casos de violência que jornalistas têm sofrido nos últimos anos no Brasil, inclusive durante os últimos meses durante manifestações, além das demissões em massa em vários veículos do país. Maria Paula avalia também que existem pessoas que valorizam a imprensa sim, mas que o papel atual do governo tem fragilizado a profissão e influenciado o público negativamente. 

一 Não conheci nenhum jornalista que não acredite na veracidade do Coronavírus, mas perdi meu pai por que ele não acreditava. Até o fim, ele achava que tinha malária, e não Covid-19, exatamente por seguir a linha dessas pessoas pró-Bolsonaro que não creem na doença.

Para a jornalista, não adianta mais chorar nas cinzas de seu pai, e sim, colaborar para que a doença seja superada de verdade. Ainda assim, Maria Paula pensa que não se deve desistir das pessoas que resistem à realidade, e sim, cuidar delas e informa-las, pois a doença não escolhe suas vítimas.  

一 Acreditando ou não acreditando, o coronavírus não vai escolher partido, raça, cor ou membro da família. O importante é que se você ama alguém que não acredita, permaneça cuidando dessa pessoa e cuidando de si, porque estamos em uma pandemia e se até quem toma cuidados está em risco, imagine quem não toma. Não esqueça também de colocar o ‘salva-vidas’ em si mesmo antes de colocar em outra pessoa.

No auxílio a esse cuidado, Maria Paula cita o jornalismo como essencial. Ele exerce um papel prioritário para a sociedade e tem provado ainda mais o seu valor nessa pandemia ao divulgar informações para que saibamos o que fazer para cuidarmos dos nossos. Ela se sente de mãos atadas, pois gostaria de levar mais informações àqueles que não possuem acessibilidade, mas que a sensação que ela possui nesse momento de fazer parte da história do jornalismo no Estado é de orgulho, pois escolheu ser comunicadora para isso: levar conhecimento, educação e informação para as pessoas. 

Em meio a uma pandemia mundial e teorias da conspiração malucas, o mais importante é lembrar da nossa humanidade e dos nossos deveres perante a sociedade. Por isso é nosso dever, como cidadãos, proteger uns aos outros quanto ao direito de noticiar fatos devidamente apurados, independente de posicionamentos político-ideológicos individuais. O que passamos hoje nos mostra de forma visceral que o nosso maior inimigo pode ser nós mesmos, e que a desinformação age como um gatilho de separação mesmo diante de uma ameaça que atinge a todos sem distinção.
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