Tenho uma mania de colocar uma playlist
em tudo o que faço. Ler um livro? Tenho que colocar músicas que se encaixam com a história do livro (na maioria das vezes, românticas). Tomar banho? Dependendo do sentimento, coloco uma feliz para dançar durante ou, se estiver triste, coloco aquelas bem depressivas, para chorar e me sentir como uma protagonista de filme de comédia romântica na parte que dá tudo errado.
Mas sem sombra de dúvidas, o lugar onde mais minhas playlists
estão presentes é no meu trajeto de ônibus até o trabalho. Oito horas da manhã, percurso de 45 minutos a uma hora, da Cidade Nova ao Centro. É praticamente uma travessia de uma ponta a outra da cidade em que reflito o rumo que a minha vida está levando com uma trilha sonora de músicas que me dão a vontade de viver. Por que não subir a passagem de nível entre a Constantino Nery e Djalma Batista, olhando a cidade do “alto”, com o sol quente da manhã batendo no meu rosto (porque eu nunca consigo lugar na sombra), com o risco de ser assaltada, ouvindo músicas indies
pop, que por algum motivo desconhecido me fazem ter esperança de que um dia atingirei meus objetivos?
Quando retorno para casa, cansada e sem tantas esperanças assim, muitas vezes com o bônus de estar sofrendo por paixão, incontáveis vezes coloquei as “mais tristes para chorar de amor”. Olhava pela janela, encostava minha cabecinha naquele vidro e estava pronta para chorar e me sentir em um clipe, enquanto passava pelas obras da Constantino, sonhando em chegar em casa, deitar na minha cama e poder chorar com o travesseiro na minha cara. Mas o estranho é que quando eu passava pela Max Teixeira e percebia que estava chegando ao meu destino, com a possibilidade de finalmente fazer o queria, notava que não tinha o mesmo efeito do que eu chorar no transporte público me sentindo em um clipe e em meio a várias pessoas desconhecidas.
Talvez a playlist, o percurso e o ônibus já eram meu cenário ideal para a minha dor de cotovelo. Me sentir em um clipe tornava mais aceitável o meu sofrimento. Melhor do que eu simplesmente só chorar na minha cama, sem plateia. Aquele momento de não ter para onde ir e me encontrar em meio a tanta gente desconhecida faz com que eu me conecte comigo mesma e com meus sentimentos.
Mas aí, tudo mudou. Uma pandemia chegou e aquele momento “eu e eu mesma” não existe mais. Nem playlist
para isso imaginava um dia criar. Inclusive, percebi que era mais apegada àquele trajeto do que eu imaginava. Era o momento que eu tinha para pensar na minha vida, sem distrações.
Não existia mais aquele momento. Não existia mais a possibilidade de satisfazer a minha síndrome de “estou sofrendo e vivendo em um clipe” retornando do trabalho, enquanto passava pela Torquato Tapajós com bônus do calor ardente de Manaus. Agora a única possibilidade que eu tinha era a minha cama e nem fechar os olhos, com aquela mesma playlist, tornava aquele sentimento real.
Nem a playlist “músicas que me dão vontade de viver”, que era o momento que elas mais precisavam me dar esperanças, tinha o mesmo efeito. Eu não podia mais escutar as canções enquanto o sol quente batia na minha cara e eu suava, enquanto esperava o semáforo mais demorado de Manaus, em frente da Arena da Amazônia, abrir.
Um dia sentei e refleti sobre isso: além das pessoas, eu realmente estava sentindo falta de andar de ônibus, no calor de Manaus, refletindo sobre a vida, ouvindo música, enquanto corria o risco de ser assaltada? Sim, eu estava. Aquele caminho significava muito mais do que eu imaginava. Era um caminho reto, sem grandes coisas para ver, mais com uma imensidão de significados por trás.
Naquele percurso, passando na frente do Parque dos Bilhares, lembrava da minha infância e quando meu pai me levava para andar de patins ali, intensificando ainda mais o significado da música indie
que me dar vontade de viver. Ou quando eu retornei para minha casa passando pela Getúlio Vargas e percebi que gostava de uma pessoa que estava há tanto tempo na minha vida, ouvindo uma música romântica. Pensei o quanto odiava inicialmente o trânsito das obras da Constantino e depois passei a gostar, porque ela me dava mais tempo.
Aquele percurso conhecia meus sentimentos mais íntimos e sonhos mais grandiosos. Minhas maiores saudades e minhas novas descobertas. Conheceu minhas expectativas e decepções. Minha felicidade de ter aprendido algo novo e a frustração de não ter feito um bom trabalho.
Percebi que aquele caminho físico, em que eu tinha local de partida e chegada, era também um momento para eu refletir o caminho que eu seguiria. Quando me vi sem essa possibilidade, parecia que tinha perdido o direcionamento. Não havia momento para reflexão, grandes acontecimentos internos e expectativas para incentivar a criação de uma playlist. Aquele percurso era como uma direção do que eu ansiava. O rumo para o meu trabalho, era quando eu buscava o rumo que tomaria para minha vida. E mesmo que eu tentasse me encontrar na minha casa, nenhum cômodo tinha o cenário ideal para eu me sentir em um clipe.