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Eu estou aqui por você, fique em casa por mim

Profissionais da saúde da linha de frente do município de Japurá se mobilizam no combate à covid-19.
Reportagem de Antonio Netto
Estudante do 7º período do curso de Jornalismo da Faculdade Martha Falcão
Publicado em 19 de junho de 2020
Foto: Secretaria Municipal de Saúde de Japurá-AM
Acordar cedinho, tomar um café gostoso e ir trabalhar sem medo era algo que fazia parte do cotidiano de Japurá, um município pequeno e pacato distante 750 km da capital do Amazonas. Durante os dois primeiros meses da pandemia do Covid-19, o município se tornava um dos poucos onde o coronavírus ainda não tinha chegado.

Mas o vírus acabou pegando carona em uma embarcação que se dirigia até um garimpo próximo à cidade, que, por incrível que pareça, ainda está funcionando. Um dos moradores da comunidade do Panema, que vamos chamar de Caso 01, apresentou os primeiros sinais do novo coronavírus. Logo de início, ele dizia lembrar que tinha topado com um dragueiro que estava indo em direção ao município e, ao prestar ajuda ao homem, acabou tendo contato com o mesmo.

No dia seguinte, eles relataram à equipe de endemias do município que havia ocorrido outra situação: cerca de 20 dias antes, a família tinha abrigado uma indígena que estava muito doente. A esposa do Caso 01 cuidou da mulher com remédios caseiros e, logo após a partida da indígena, a esposa do Caso 01 começou a apresentar os mesmos sintomas da enferma. Assim o vírus começou a se propagar entre a família e logo o casal e filhos apresentavam os sintomas do covid-19, relatou Mayra Souza, Secretária de Saúde do Município de Japurá.

O Caso 01, sentindo os primeiros sintomas, se dirigiu para município de Japurá, que fica cerca de três horas da comunidade do Panema onde ele mora com a família, e de primeira testou positivo para o novo coronavírus. Com isso, começou uma nova rotina de cuidados dentro do município. A equipe da saúde, que desde o início da pandemia já vinha lutando com os monitoramentos dentro da cidade, logo adotaram a barreira sanitária que realizava a triagem nas pessoas que chegavam de fora do município e apresentavam o termo de compromisso de quarentena. Após o primeiro caso, começava uma busca persistente nas pessoas próximas ao Caso 01, colocando familiares e amigos em isolamento até realmente identificar quem poderia estar contaminado ou não.

Desde março, quando o Amazonas testou o primeiro caso do novo coronavírus, a preocupação com a propagação da doença no interior começou a se intensificar. Com a dificuldade de chegar a muitos dos municípios do interior, cria-se um complexo desafio logístico para o tratamento de pacientes em caso grave do Covid-19. Apesar da dimensão do estado do Amazonas, só a capital tem serviço de UTI, enquanto os municípios não apresentam capacidade para lidar com casos graves da enfermidade. A rede estadual entrou em colapso em abril e hoje opera com 82% da sua capacidade.

Agora nos deparamos com o interior superando a capital Manaus em números de infectados. Dos 43.195 casos confirmados no Amazonas até quarta-feira (3), 56,1% são de fora da capital. Com isso, a realidade dos municípios muda de figura completamente, levando os profissionais da saúde a assumir novas rotinas de trabalho.

A educação em saúde foi uma das medidas que Mayra Souza logo adotou em sua equipe. “Eu nomeei 18 fiscais sanitários para ir nos comércios fazer a conscientização dos donos e funcionários dos estabelecimentos sobre o uso de máscaras e álcool em gel. Isso foi muito importante, pois mais ou menos 90% dos estabelecimentos adotaram pias para a higienização das mãos dos clientes”.

Mayra explica ainda que com a atual situação dos primeiros casos no município, criou-se também um “Gripário” com 43 funcionários. Lá é uma espécie de unidade mista do hospital com a UBS para onde se dirigem apenas casos de síndromes gripais, então quem sente os sintomas da gripe comum ou acha que está com algum sintoma do Covid-19 pode ser atendido imediatamente pelos profissionais ali apostos ou podem voltar após alguns dias, conforme avaliação médica. Com isso, é possível diminuir o risco de contaminação dentro do hospital e UBS.

Profissionais que são tidos como essenciais em meio à pandemia e voluntários estão de mãos dadas pelo bem do município. Metaforicamente, claro, pois o contato direto entre pessoas não é recomendado devido ao alto poder de contágio da Covid-19. A preocupação real de Japurá se dá muito pelo fato de municípios vizinhos como Maraã, Alvarães e Tefé apresentarem um número de pessoas contaminadas muito elevado em um curto período de tempo. Maraã, em poucas semanas, totalizou 105 casos. Alvarães iniciou junho com 292. Tefé apresenta os dados mais alarmantes, com 1.935 casos da Covid-19. Com isso, a equipe da saúde de Japurá luta para que os 118 casos confirmados até o comecinho de junho não aumentem. Mesmo com todas as medidas sendo tomadas, o isolamento social ainda é a melhor forma de se proteger. 

A atual secretária de saúde está em seu primeiro ano na função e se deparou com esse grande desafio que é o coronavírus. Nesse cenário, o contato de Mayra com a família tem sido mínimo: seu marido e filho se encontram em Manaus e o pouco contato que ela tinha com sua avó e primos foi cortado, pois como ela diz, “não estamos na hora de visitar ninguém, temos que nos proteger e proteger quem amamos”. O alívio vem ao constatar que o município de Japurá não apresentou nenhum óbito até o começo de junho.

Não bastasse a distância dos familiares em meio a tantas mortes no Estado, o volume de trabalho se coloca como outro fator de estresse. “Antes eu pegava minhas coisas e ia pra casa no término do trabalho, mas hoje não tem fim de expediente. Trabalhamos de domingo a domingo, e mesmo saturada, com as forças esgotadas, o que vale é a saúde do nosso povo. Temos, graças a Deus, nosso EPI e torcemos para que nenhum paciente se agrave. Sou muito grata pela equipe maravilhosa que trabalha comigo, pois sem eles não seria possível fazer tanto pelo município”, declara.

Trabalho de formiguinha

Ficar em casa é a melhor opção para todos se prevenirem de um vírus com alto poder de contágio. Mesmo assim (e justamente por isso), profissões tidas como essenciais não podem ficar paradas. Nelas se encaixa Luiza Karla, nutricionista recém chegada ao município de Japurá, que foi escolhida pelo comitê da saúde do município para atuar na linha de frente do combate ao coronavírus. Ter o compromisso com a saúde da população é uma das coisas que Karla pontua como importante na sua profissão. A dedicação da profissional tem recebido elogios da população japuraense, que a vê diariamente nas ruas e comunidades vizinhas levando conhecimentos sobre a doença e como se prevenir dela.

A cidade é vista por Karla como bem estruturada no quesito de equipamentos e profissionais. Japurá possui três médicos, cinco enfermeiros e uma equipe de técnicos em enfermagem que estão atuando na linha de frente do coronavírus. Parece pouco, mas dentro da realidade amazônica, é mais do que muitas comunidades têm acesso.

O apoio que a equipe da saúde recebe é um motivador para a nutricionista do município que se sente honrada em poder contribuir com a conscientização dentro da cidade onde cresceu. “Eu me sinto honrada em poder contribuir para o município que me criei. Saí daqui, estudei fora e hoje retorno e posso ajudar o meu povo em uma situação tão difícil como essa. Eu levo as críticas e elogios que recebo na atuação do meu trabalho como coisas positivas, pois sei que nunca vamos agradar a todos. Procuro seguir as orientações da OMS e passar esse conhecimento adiante, pois não adianta somente orientar e não fazer”, explica Karla, que, apesar da realidade distópica de se ver em meio a uma batalha contra um inimigo invisível de alcance global, afirma estar feliz por algo simples: contribuir com sua cidade. "Eu realmente vesti a camisa. Não somente eu, mas toda equipe esperamos que o trabalho que está sendo feito possa surtir mais efeitos positivos. Enquanto isso não acabar, vamos estar aqui, felizes em cumprir nosso papel”.

Tal como acontece com Mayra, o distanciamento ainda mais intenso da família é algo que pesa no dia a dia. Afinal, a possibilidade de contato direto com doentes faz com que trabalhadores ligados à saúde optem por se afastar completamente dos seus, criando um fator extra de pressão psicológica. Mas, no caso de Karla, esse afastamento pode ser também um alívio. “Eu não tenho minha família aqui em Japurá, eles moram em Manaus hoje em dia. Mesmo com tanta saudade, fico feliz por eles não estarem aqui, pois fico imaginando como eu iria me preocupar se estivéssemos juntos. O medo de contaminá-los seria horrível porque eu trabalho na linha de frente do município".

O preço de ser essencial

As rotinas de trabalho na área da saúde mudaram drasticamente. Logo se nota isso nas vestimentas dos profissionais, por exemplo. Os EPI se multiplicaram e os guerreiros da saúde usam uma verdadeira armadura no seu ambiente de trabalho. Como o risco de se contaminar nos hospitais são sempre maiores, médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem devem tomar todo cuidado possível.

Jéssica Thais, técnica em enfermagem do hospital Mayara Redman Abdel Aziz, tinha uma rotina de trabalho tranquila antes. Numa cidade pequena como Japurá, os incidentes e doenças não eram constantes, então seus plantões costumavam ser pouco movimentados. Após sua jornada de trabalho, ela podia abraçar e encher de beijos sua filha mais nova, de 6 meses de idade. Mas tudo isso mudou quando os primeiros casos surgiram no município. Agora, com risco de se contaminar e passar o vírus para seus familiares, Jéssica assumiu uma posição mais distante de todos, diminuindo o contato com eles. Por precaução, sua filha mais nova ficou sob os cuidado da família de seu ex-companheiro, e desde então as chamadas de vídeo com a pequena a deixam mais derretida que tudo, mas com o coração tranquilo, sabendo que elas estão mais seguras do novo coronavírus assim do que se mantivessem o contato físico. Em casa, os pertences de Jéssica são separados dos demais.

“Eu tenho consciência que a responsabilidade da minha profissão é muito grande, pois todos nós da área da saúde lidamos com vidas. Mas eu assumi o compromisso e procuro dar sempre meu melhor como profissional. Eu sei que tudo que estamos passando é algo surreal e estamos pagando um preço alto por tudo isso. Ficar sem ver minha filha é algo torturante, mas eu também sei que é algo necessário para que possamos seguir em frente” reflete a técnica em enfermagem.

Assumir uma profissão essencial é uma escolha muito impactante para um indivíduo, pois ele se coloca em uma posição na qual, sem sua presença, tudo seria um caos. No caso dos profissionais da saúde, isso fica ainda mais claro, e a consciência de que os cuidados poderiam ser mais intensos os assola. "O trabalho que estamos fazendo é realmente muito essencial na atual situação. É uma pena que nem tudo depende de nós. Se as pessoas procurassem realmente obedecer às orientações, tudo já estaria bem melhor. Meu medo é que alguém com a imunidade baixa seja contaminada por esse vírus, acabe chegando ao óbito e com isso venha a trazer tristeza para sua família e para nós, que não temos como tratar de alguém em estado grave aqui", admite Jéssica. 

No momento em que o leitor se debruçar na leitura desta reportagem, os números de casos da Covid-19 já serão outros. A gradual reabertura das atividades na capital Manaus inclui também o transporte fluvial, um dos meios de se chegar à Japurá. Somando-se isso à estrutura simples da rede de saúde do município, equipada para atender a demandas de uma realidade menos louca que a que vivemos com a pandemia, as rotinas de Jéssica, Karla e Mayra podem vir a sofrer grande impacto. Quando será que elas poderão abraçar seus entes queridos novamente? Por esse e outros motivos se faz necessário levar a sério o lema “Estou aqui por você, fique em casa por mim” que os profissionais da saúde levantaram em meio a pandemia.
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