A Cearense Teresinha dos Santos, ou dona Tetê, como a chamo desde criança, tem 67 anos e trabalha junto com o seu marido, Sebastião Dantas Rodrigues, de 69 anos. O casal é feirante na feira do São Francisco, na zona Sul de Manaus há muito tempo, e bem antes de eu conhecê-los, eles já garantiam o sustento deles dali, da venda de verduras e temperos.
Um dia desses, voltando para casa, encontrei o casal na rua os questionei o porquê deles estarem na rua no meio da pandemia. Afinal, eles são do grupo de risco por serem idosos. A dona Teresinha respondeu, com a língua afiada que sempre teve:
— Entre o risco de pegar a doença e passar necessidade, você acha que a gente pode escolher?
Essas palavras foram um soco no estômago pelo simples fato de saber que essa é a situação de milhões de brasileiros que não podem deixar sua rotina de trabalho para atender à determinação dos governos de evitar contato social, sejam eles trabalhadores informais ou com carteira assinada. A base da renda do casal é tirada na feira. Como ela não produz os temperos, compra de terceiros para revender. Outra parte vem das aposentadorias de um salário mínimo, tanto dela como do marido.
Lembro da tarde ensolarada de sexta-feira, dia 13 de março, quando a Fundação de Vigilância de Saúde do Amazonas (FVS/AM) convocou uma coletiva de imprensa e notificou o primeiro caso do novo coronavírus em Manaus. A vida das pessoas mundo afora já estava uma loucura, todos seguindo as recomendações das autoridades, o medo estava estampado na cara de cada um.
Na medida em que isolamento foi se estendendo e os reflexos na economia, que já não estava lá essas coisas, foi piorando, muitas pessoas perderam seus empregos, enquanto que parte delas continuam na ativa para que diversos setores funcionem, mesmo com o temor de contaminação, como no caso dos profissionais da saúde, bombeiros e policiais. Mas há também os porteiros, caixas, cuidadores de idosos, veterinários, frentistas, bancários, taxistas, jornalistas, trabalhadores da construção civil e indústria, dentre outros, que não tem como ficar em isolamento social e mantêm em pé serviços menos valorizados, porém importantes.
O Amazonas registrou mais de 116 casos de covid-19 até 20 de março, totalizando 2.160 casos confirmados do novo coronavírus no estado, segundo o boletim da FVS/AM, e mais três óbitos pela doença. Com a pandemia, veio o medo do desemprego. De acordo com os dados da Pnad Contínua, o Brasil tem 12,8 milhões de desempregados, com o avanço da taxa de desocupação para 12,6% no trimestre encerrado em abril.
Para se ter uma ideia do cenário em Manaus, a Universidade do Estado do Amazonas (UEA) apresentou a pesquisa “O impacto da Covid-19 sobre os negócios de Manaus: a percepção do comércio local”. Feita com 202 empresas locais ouvidos entre os dias de 24 de abril a 2 de maio de 2020, 95% afirmaram que a pandemia teve impacto negativo ou muito negativo sobre os seus negócios. Além disso, o estudo mostrou que mais da metade (54%), ou seja, 109 empresas, precisaram fazer demissões no quadro de funcionários por conta dos impactos da pandemia do coronavírus na economia local. O levantamento aplicou questionários em empresas dos setores de serviços, comércio, varejo de alimentos, e ainda o setor de bares e restaurantes.
Segundo a pesquisa, apesar do evidente impacto negativo, o apoio do empresariado às medidas de isolamento social varia: 34% discordam ou discordam totalmente das medidas; 29% estão divididos; e 37% concordam ou concordam totalmente. Por outro lado, quase metade dos empresários (49%) entendem que, apesar da importância das medidas de isolamento, manter a economia funcionando é ainda mais importante, enquanto somente 21% discordam ou discordam totalmente. Novamente, quase um terço deles (30%) está dividido.
Essa doença atingiu não somente a saúde das pessoas no mundo, mas também o bolso. Já era de se esperar o agravamento da crise econômica, afinal, a lei da oferta e procura rege o mercado financeiro. Seguindo as medidas de prevenção e combate à doença, as pessoas precisam ficar em casa e isso mudou o consumo e causou uma retração econômica sem precedentes, que ainda está longe de chegar ao fim. No Amazonas, durante enfrentamento desta pandemia, os mais afetados são os trabalhadores informais.
— A gente toma remédio minha filha, tem que pagar água, luz, comer, vestir — afirma Dona Terezinha, dando uma cara muito próxima para esse cenário difícil —Pode ser só nós dois, tem gente que acha que é muito, mas as coisas não estão fáceis. Se a gente deixar de vir quatro vezes, perdemos nosso ponto. A gente vai cuidando, usa luvas, máscara, mas é o que podemos fazer.
Fiquei ali, ouvindo-a falar pro Seo Sebastião:
— Lembra de como era essa rua antes disso tudo acontecer? A Clarindo de Queiroz não era assim parada não, uma hora dessas tinha um monte de gurizinho voltando da escola, e vinham até aqui na minha banca comprar os temperos e verduras para o almoço. As coisas eram mais animadas. A chegada dessa pandemia de coronavírus no Brasil me assustou, mas fiquei muito mais assustada quando chegou aqui na nossa terrinha.
Ela virou para mim e deu um suspiro bem profundo, como se toda aquela carga que ela estava carregando fosse sair naquele momento.
—Sabe, minha filha, tenho medo de morrer com esse vírus, mas também tenho medo de morrer de fome. Não temos escolha.
O novo Coronavírus foi identificado em dezembro de 2019 na cidade de Wuhan, província de Hubei, na China, e se espalhou rapidamente. Chegou em Manaus, onde, ironicamente, até a noite anterior ao anúncio do primeiro caso, os manauaras estavam comemorando a ausência da doença em solo baré. Ninguém estava preparado para isso.
Desde então, a pandemia do novo coronavírus está mudando a vida de governos, populações e indivíduos. Um novo mundo parece se desenhar, de contornos ainda pouco nítidos. A coisa em Manaus começou a ficar feia mesmo no dia 17 de março, quando todas as escolas, faculdades, empresas de órgão público e privado começaram a adotar o sistema online para executarem as suas atividades. Uma sensação de medo, incertezas, pânico e desajuste agora fazem parte desse novo mundo ainda em formação, e nós definitivamente estávamos nos sentindo parte desse cenário. O vírus começou a deixar tudo sem cor, sem esperanças, uma lentidão e um profundo desinteresse na vida vem se alastrando nas feições de cada indivíduo.
Na medida em que o número de casos crescia em solo amazonense, os mais conscientes (ou os mais pessimistas?) começavam a sentir a capital descer ladeira abaixo. Desde que foi notificado o primeiro caso, era coletiva de imprensa uma atrás da outra para informar o aumento absurdo no número de novos infectados. Mais assustador ainda foi constatar que esse número, de acordo com os boletins da FVS/AM, aumentava não apenas rápido, mas diariamente. Uma incógnita começava a pairar na cabeça dos manauaras: quando vamos sair dessa?
Para evitar o contágio em massa, no dia 21 de março governadores e prefeitos decretaram o fechamento do comércio em caráter excepcional e temporário. Dentre os estabelecimentos comerciais estavam lojas, centros comerciais, além de teatros, cinemas, casas de espetáculos, dentre outros que implicassem atendimento ao público ou aglomeração. O decreto do Governador do Amazonas Wilson Lima (PSC) especificou ainda que não estava suspenso o estabelecimento como padarias, supermercados, drogarias, bem como os estabelecimentos comerciais de serviços essenciais. O isolamento social ganhou força nessa fase, e o lema “Fique em Casa” se espalhava. Mas não o suficiente.
No domingo do dia 26 de abril, todos os jornais manauaras noticiaram o maior registro de enterros feitos no Estado desde o início da pandemia. Foram 140 sepultamentos e duas cremações registrados só na capital, segundo a prefeitura. O número superou o recorde da época, de 136 óbitos registrados na semana anterior. Por conta desse aumento, Manaus fez uma parceria com um crematório local. Fotos das covas abertas num cemitério local correram o mundo. Foi assim que entendi claramente o medo que a dona Teresinha tinha do vírus, e o peso de sua escolha entre o salário e a vida dela e a do marido.
Assim que tive oportunidade, procurei a Elice. Ela é manauara e servidora pública da Secretaria Municipal de Saúde (Semsa) e advogada. Nas horas vagas, dá aulas de violino. Elice exerce a função de auxiliar administrativo em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), e com a pandemia teve que expandir suas atividades. Porque ela é um dos profissionais que fazem parte do trabalho essencial, não tem como realizar suas atividades de casa, então não há pessoa melhor para descrever como estão sendo esses dias sombrios e como isso tem impactado na vida de quem precisa estar expostos ao risco de contágio constantemente.
Mandei uma mensagem a ela pelo whatsapp.
—Oi, Elice, desculpe, mas você tá bem? Como tem sido esses dias de pandemia para você?
Na mesma hora ela me responde em um áudio de oito minutos. Posso dizer que foi um desabafo pelo tom de voz. Ao mesmo tempo, ela parecia grata por alguém ter perguntado como ela estava se sentindo.
—Amiga, sinto falta da minha rotina de antes dessa pandemia, saudade do fórum, das audiências, das perícias, do meu trabalho tranquilo, da igreja e de ministrar as minhas aulas de violino. Esses meses têm sido puxados e bem tensos. De uma hora para outra estamos trabalhando de domingo a domingo, com atividades dobradas por conta da diminuição do número de profissionais nas equipes, que estão ficando doentes. A cada dia trabalhar em um setor diferente para atender a população, que está bastante assustada. As pessoas vão até a UBS achando que estão infectadas. No caminho para o trabalho, em meu carro levo de oito a dez minutos até a UBS. O mundo não é mais o mesmo, as pessoas não são mais as mesmas e as ruas estão pouco mais vazias. Esse lado é bom, porque as chances de contaminação pela Covid-19 reduzem para quem não pode ficar isolado. Abril foi o pior mês para se trabalhar. Exaustivo, pesado e sem folga. Também foi o mês do pico da doença. As UBS estavam recebendo os pacientes que os SPA não estavam dando conta.
Elice não parou por aí. Quando conversamos, no finalzinho de maio, ela disse ainda que o emocional pesou bastante, porque seu local de trabalho é uma unidade básica de saúde, logo, não há leitos, e sim, consultórios, e não tinha muito o que fazer com os pacientes que chegavam em mau estado.
—Lembro bem de uma situação que me tocou bastante. Uma senhora por volta dos 80 anos chegou bem debilitada no colo do neto, parecia um bebê de tão frágil que ela estava. Na hora a levamos para a sala de isolamento e colocamos o oxímetro nela. A febre estava em 38° e chamamos o SAMU. No caminho, ela faleceu. É um desgaste emocional muito grande. Agora o governador disse que o comércio vai voltar de forma gradual. Tenho medo que as pessoas deixem de usar o bom senso e voltem a circular sem necessidade.
Ao passo que Elice encara essa realidade de frente por conta de sua profissão, há os profissionais que estão trabalhando de casa por não serem considerados essenciais nessa linha de frente. Foi assim que a modalidade do home office ganhou força. Isso me fez lembrar uma conversa que tive recentemente com o Alberto Vieira. Ele também é manauara, tem 23 anos e é assistente de marketing no Instituto de Especialização do Amazonas (ESP). Alberto comentou que a empresa onde ele trabalha foi bem sábia e aderiu ao home office bem antes da propagação do vírus em Manaus. Além disso, ele teve equipamentos disponibilizados pelo instituto para continuar o serviço de casa. Mas nem tudo são flores.
—Durante essa loucura de pandemia, aconteceu um acidente com a minha tia. Ela é paciente oncológica e o câncer dela influencia na calcificação dos ossos. Pelo simples fato dela levantar de uma cadeira, ela quebrou o fêmur e teve que fazer uma cirurgia. Tive que mobilizar meus familiares e amigos para doarem sangue e ela conseguir fazer a cirurgia, porque o Hemoam está em um estado bem crítico com falta de sangue. A população acha que se doar, pode contrair o vírus.
E foi assim que os reflexos da lotação nos hospitais foram sentidos por Alberto. Os cuidados com a tia tornaram a rotina de trabalho mais complexa, mexendo com os ânimos.
— Como esse acidente impossibilitou minha tia de se locomover e requer um cuidado a mais, às vezes estou em uma reunião do trabalho e tenho que pedir licença para ajudá-la a se levantar para levar do banheiro. Não tem como distinguir muito o trabalho dos afazeres de casa. Tanto a pandemia quanto a doença dela são situações que eu não esperava, e pelo fato de estarmos em home office, as demandas dobraram. Não há comunicação presencial, estamos trabalhando efetivamente através das redes e esse acidente mexeu muito com o meu psicológico, que já estava afetado.
O governador do Amazonas, Wilson Lima, anunciou em 27 de maio a reabertura gradual do comércio não essencial em Manaus a partir do dia 1º de junho. Durante coletiva de imprensa, na sede do governo, ele declarou:
—Todas as nossas decisões são responsáveis, equilibradas, levando em consideração uma série de fatores, como a diminuição dos casos [de Covid-19] na capital e o aumento da estrutura para o tratamento da doença. Conseguimos aumentar, significativamente, a quantidade de leitos clínicos e de UTI. Para se ter uma ideia, o Amazonas tem a melhor taxa de recuperação do País, que chega a 70%, enquanto que a média nacional é de 40%. O Estado possui mais de 33 mil casos confirmados e mais de 26 mil recuperados da Covid-19 nesta última quarta [o dia em que o pronunciamento foi feito.
Depois dessa coletiva, o Alberto me procurou falando:
—Estou otimista com a volta gradual do comércio. Temos que retornar aos poucos, não tem como ficarmos 100% parados. Agora temos que nos habituar ao trabalho presencial e nos resta esperar que a população continue se prevenindo.
O plano de reabertura que tanto empolgou Alberto prevê quatro ciclos: o primeiro, a partir de 1⁰ de junho; o segundo, em 15 de junho; o terceiro, em 29 de junho; e o quarto, a partir de 6 de julho. De acordo com o governo, o avanço para cada etapa do ciclo dependerá da curva de casos do novo coronavírus na capital.
Com a reabertura de parte do comércio, Manaus voltou a registrar um número de casos acima da média dos últimos dias, com 919 pessoas infectadas na última quinta-feira, 4 de junho. Dos 20 óbitos registrados no boletim epidemiológico de 3 de junho, 10 foram em Manaus e 10 nos municípios do interior do Estado. A realidade aqui é bem nítida: entre o alimento e a saúde, qual dessas opções são levadas em consideração? Acredito que os fatos já respondem por si só.