O ano de 2020 parece determinado a frustrar muitas expectativas. Expectativas controversas: lucrar, viajar, estar sempre busy e ser extremamente produtivo. Mas passamos de 2019 para o ano em que o mundo seria surpreendido por uma arbitrária ordem de parar tudo. Eu poderia tentar descrever a urgência que havia antes de março deste ano em conseguir mais tempo, não perder uma “eternidade” nos engarrafamentos, conseguir cozinhar uma refeição para meus marido e filhos, e dormir. Dormir despreocupadamente por pelo menos um dia na semana (porque os fins de semana sempre se tornavam mais trabalhosos, com os sábados de cursos de inglês e francês, e atividades na comunidade religiosa, aos domingos). Mas, de repente, uma mudança na rotina.
Quase no meio do ano, nada mais se parece com aquele meu recente mundo atribulado de tão pouco tempo atrás. Há dois meses, eu suplicaria ao universo para que o mundo desacelerasse. E agora eu precisei me mudar em meio a uma quarentena mundial em busca de um pouco mais de aproximação familiar, para melhor fazer o mínimo.
Em meio à pandemia, saí do lugar onde morava para buscar isolamento conjunto. Sim, porque se devemos nos fechar em casa, que seja junto de pessoas de quem não queremos manter distância. O antigo bairro da Cachoeirinha está mesmo com ares sombrios, seja imaginação minha ou não, então fomos para a Zona Norte da Cidade, rumo à bem ocupada casa da sogra.
Fato é que eu não tinha ninguém que seja meu ente por perto, e por ter filhos pequenos, a pressão familiar nessa época de isolamento começou cedo. Assim, a gente aproveitou a deixa para pedir reforços. Se os bebês são o foco da vigilância, vamos todos para debaixo do mesmo teto. Então, poucas peças de roupas em quatro mochilas, sendo uma para cada membro da minha pequena família, e fomos rumo ao Monte das Oliveiras.
A Zona Centro-sul da cidade de alguma maneira parecia ser habitada pelos mais cautelosos neste momento histórico para nossa cidade, país e mundo. A insuportável movimentação na avenida principal onde morávamos cessou. A Avenida Castelo Branco, na Cachoeirinha, sempre teve um tráfego opressor de manhã, tarde, noite e madrugada, o que por vezes me deixou insone e frustrada. Mas agora, acredite, ouve-se o vento nas árvores. Os rumores iniciais sobre casos de Covid-19 em Manaus tratavam-se de algumas pessoas das redondezas que voltaram do exterior após viagens turísticas, e parece que este dado realmente amedrontou a circunvizinhança de Cachoeirinha, Aleixo, Adrianópolis e Vieiralves.
Entretanto, já no trajeto da Avenida das Torres, foi possível sentir uma enorme diferença em relação à comoção social ao longo da travessia de tantos bairros. No início da avenida rumo aos bairros da Zona Norte, passamos por um engarrafamento pesado. Era como se saíssemos de um mundo pós apocalíptico e entrássemos na mesma Manaus de trânsito pesado, que nos fazia chorar e suar às bicas, de sempre.
Em uma palavra, poderia resumir o que vimos como discrepante. Além da inacreditável distância de percurso, já que a viagem de carro durou uma hora até o “novo bairro”, é também de deixar incrédulo a qualquer um que esteja realmente preocupado nestes dias, quando se vê a diferença de comportamento entre os moradores da rua onde à pouco habitávamos e a nova rua onde chegamos para passar tempo indeterminado. A nova parece, sem exagerar na constatação, uma grande feira à seu aberto. As pessoas estão alheias ao terrorismo consciente causado pelo invisível coronavírus ao redor de todo o planeta. Me faz lembrar o antigo provérbio popular, que afirma que quem não é visto, não é lembrado.
Uma das cenas que retratam bem nossa chegada foi em uma grande lanchonete, com muitas pessoas, um aglomerado de gente se divertindo no meio da tarde. Beijos na boca e música alta eram exigência, aparentemente, uma euforia jovial com abraços e muito toque. Algo extremamente comum em outros tempos, mas não agora, quando o mundo real está da porta para dentro das casas. A partir dali, começamos a reparar em nosso percurso a grande quantidade de gente nas ruas, uma ao lado da outra, a espera em um caixa de mercadinho ou banca de frutas. Todos os edifícios de portas abertas, sejam eles propriedades privadas ou espaços públicos, tudo abarrotado de gente!
Na nossa personalidade crítica, quase ranzinza, a expectativa é de que as muitas notícias diárias sobre a fatalidade da doença, fruto da falta de cuidados devidos, sirva como alerta para nossa população. nem que seja em posse do artifício do temor, porque na atual conjuntura, o medo deveria ser uma sensação muito bem vinda, posto que ele pode nos alertar sobre a exata postura que devemos adotar quando precisamos nos proteger. Não entendemos o descaso total, porque as estatísticas são estarrecedoras, e por isso também não conseguimos estabelecer uma coerência que sirva de consenso entre as duas principais formas de reagir a este momento mundial.. Parece que ou você acredita totalmente e protege a si e a sua família, ou você permanece na mesma forma de pensar e agir de antes, ao julgar desnecessário se precaver.
Nós temos medo. Binho, um grande amigo, musicista como nós, jovem de quarenta e três anos, foi o primeiro caso de óbito de um habitante de Manaus, posterior ao homem parintinense, de seus quarenta e nove anos de idade. Na semana seguinte, Margarita, a mãe de dois de meus pequenos alunos de música, sendo ela também violinista aclamada no principal teatro de nossa cidade, faleceu em decorrência do vírus, ainda entre os primeiros casos. A partir daí, sucessivas notícias não pararam de chegar. E continuam.
É difícil digerir uma contagem brutal como esta. Muitos avós de amigos, uma professora da escola de meus filhos, colega minha, com uma bebê recém-nascida, muitos sucumbindo, falecendo pelo contágio do novo coronavírus. Então meus pais e irmãos são contaminados, felizmente se recuperando após duas semanas e meia... Que susto terrível! Acho que não há como estar tão tranquilamente passivo nesta pandemia. É assim que nós nos sentimos, minha família e eu. Mas certamente não é a opinião de todos. Nos lados de cá da cidade, tudo flui ordinariamente, e podemos sentir nitidamente que advertências não são bem vindas.
O que seria necessário para mudar esta percepção da maioria das pessoas que transitam por aqui? Não sabemos o que, de nossa parte, contribuiria para trazer uma noção mais real do perigo ao qual nossa cidade se submete. Somos os chatos, que sempre que possível alertam os desavisados. Enquanto isto, estamos exclusos, fazendo compras apenas quando realmente mandatório, e tentando o máximo possível ter experiências benéficas neste tão inesperado contexto de 2020. Usufruímos do aconchego que temos em família, damos suporte às crianças em suas aulas online, além de nossas próprias aulas remotas da faculdade, lecionamos para os alunos de música e compomos muitas canções. Vez ou outra aderindo a corrente das Lives, comendo bastante, namorando ainda mais e entendendo que em meio a qualquer tipo de caos, é vital ter alguém por você, porque como o próprio texto sagrado exprime : “Não é bom que o ser humano esteja só!”.
Aconchegados com quem amamos, podemos acreditar que nos adaptaremos a toda nova forma de conduzir a vida. Só assim conseguimos sentir esperança suficiente para um recomeço futuro. Então, sigamos na torcida pela real conscientização, pelas precauções em prática, pela virtude da prudência e por nosso planeta.