A maioria dos profissionais de arte do Brasil e do mundo estão passando por várias dificuldades. Diariamente, eles estão procurando subterfúgios para resolver a falta de eventos, até porque essas pessoas precisam se manter pagando aluguel, comprando alimentos e uma gama de outras dívidas que todos nós acumulamos no cotidiano. Só que a população esquece que os artistas são peças fundamentais no desenvolvimento de um país.
Acordar todos os dias e não poder dar o play no disco “Sobrevivendo no inferno” do Racionais MC’s deve ser uma das maiores tristezas para um ser humano, assim como não poder assistir a um filme de Quentin Tarantino ou não ler um livro de Ruy Castro. A questão é: como viveríamos sem arte nesse momento?
Para a diretora de teatro Renata Leite, a pergunta é complexa. Ela teve que transformar sua rotina de uma maneira ainda mais impactante em relação aos trabalhadores que ficaram, por exemplo, em home office. Ela dá e participa de aulas virtuais por aplicativo e lives, como professora e como aluna. Curiosamente, Renata confessa que o período está sendo muito produtivo em termos de estudo de mesa, estudo de pesquisa e até prática mesmo por vídeo. Perde-se, nesse processo, o contato do coletivo, que ela acredita ser essencial no teatro, mas ganha-se em novas possibilidades, aguçando a criatividade e se reinventando.
Quando perguntei à Renata sobre as saudades da energia do público nas suas atividades, ela se surpreendeu. “Gente que pergunta boa, pois justamente tenho pensando nisso toda aula! Tenho uma aluna que não gosta, pra ela está sendo bem difícil. Eu já tentei de tudo e tem gerado um interesse maior com eles: jogos virtuais, de atenção, de memória, de observação no outro, de preparação de cena em troca com eles, onde todos criticam e lidam com a crítica de forma construtiva, além da minha visão técnica e pedagógica”, ela explica.
Renata comentou como ela enxerga a desvalorização das artes pelo governo e a valorização dela para manutenção da sanidade dos isolados e foi bem direta. "Infelizmente, o governo não tem interesse que a arte seja desenvolvida, que o artista se manifeste, porque isso pode gerar reflexão e opiniões contrárias do governo, atrapalhando todo o plano deles de seguirmos com uma sociedade ainda bastante ignorante. Não consigo classificar o nosso governo de modo geral como algo que trabalha para um desenvolvimento social”.
Para Renata, é notório que o desenvolvimento ou não de políticas públicas de suporte às artes no país é guiada pelo interesse próprio do governo dominante em dado momento. Num cenário atípico como o da pandemia, isso só se agrava. “Isso reverbera muito na arte por ser uma ação de risco para eles. A nossa secretaria de cultura é lamentável, uma vergonha, uma grande demonstração de desrespeito para com a classe, entendendo que não existe, não foi até agora pontuado algo que de fato dê assistência para esses profissionais que, principalmente nesse momento, contribuem muito com a ocupação positiva no isolamento”, critica a artista.
Diretora de teatro há mais de vinte anos, Renata foi bem incisiva ao falar do futuro do teatro brasileiro após a pandemia. Ela acredita que o teatro vai ficar ainda mais forte para lidar com as dificuldades que infelizmente vão vir mediante às novas regras de contato e ao posicionamento de desprezo do presidente quanto aos cuidados da população, o que acaba ampliando o tempo de isolamento pela não contenção da doença. Citou também que o único caminho é unir forças, seguindo fortes, danados e disponíveis para contribuir com um mundo melhor. E finalizou pedindo: “que Dionísio e todos os deuses da arte nos ajudem!”.
Infelizmente o problema no Brasil está além do que se vê. O país é um dos que menos investe em desenvolvimento cultural. Tendo em vista todos os problemas com a pandemia do novo coronavírus, os artistas ainda têm que conviver com a falta de incentivo do atual governo federal.
O setor público destinou para a área de cultura cerca de R$ 9,1 de bilhões em 2019, correspondente a 0,21% do total de despesas consolidadas da administração pública. Apesar desse aumento dos dispêndios, todas as esferas de governo reduziram suas participações de gastos no setor cultural em sete anos, passando de 0,28% em 2011 para 0,21% no ano de 2019. Os dados são do Sistema de Informações e Indicadores Culturais 2019 pelo IBGE.
Alemanha 7 X Brasil 1
Já no contraponto do Brasil vem a Alemanha, um país que enxerga com muita segurança que as transformações sociais podem acontecer a partir de pequenas e grandes ações. A Alemanha leva com muita seriedade o desenvolvimento da sua cultura. Segundo a BBC inglesa, o investimento total do país na cultura é de cerca de 9,5 bilhões de euros, o equivalente a R$ 29,77 bilhões. Um fato interessante que aconteceu é que quando a crise econômica na Europa estava chegando a níveis absurdos, os parlamentares alemães concordaram que o orçamento para investimentos culturais não seria reduzido. A participação da economia criativa da cultura do PIB alemão é equivalente ao da indústria automobilística, por isso eles levam muito a sério o desenvolvimento cultural.
Conversando com a artista plástica alemã Helke Piszczek, é possível perceber a diferença no tratamento da questão artístico-cultural em seu país de origem. Apesar dos idiomas diferentes e da internet variando entre altos baixos de conexão, o papo fluiu muito bem.
Helke, que vive em Dortmund e é pintura há cerca de 40 anos, nos contou como que decidiu viver apenas de arte e quais foram os maiores desafios. Falou também dos incentivos que a Alemanha proporciona para os artistas. “No país, os artistas têm um apoio gigantesco do governo”, explicou. Ela é formada em Economia na Jocobs University Bremen, mas desde de muito cedo decidiu trilhar o caminho no que mais amava. “A decisão de viver de arte chegou quando meu capital foi aumentando e, com isso, passei a conseguir pagar as próprias contas”.
Quando ela fala sobre os desafios que enfrentou na carreira, entendemos que a maioria passa por isso não importa o país. “É claro que o financeiro pesa, e existe todo um processo de fazer curso para aprender a desenhar e fazer um networking”, detalhou Helke. Entretanto, as coisas acontecem e terminam na venda, o que, no quaso dos quadros que a alemã produz, dá uma dinâmica diferente à circulação da obra, se comparado ao contexto de Renata, no teatro, o qual pressupõe o público presente, próximo a ela.
É de suma importância também saber qual é a rotina de produção de um artista como Helke. Ela começou dizendo que os quadros são todos feitos em seu ateliê. Ela começa, sai e toma café, volta, isso todos os dias. Sempre faz as refeições na rua e acha extremamente desnecessário fazer em casa, afinal mora sozinha. Entretanto, essas saídas lhe inspiram bastante para compor novos quadros. Porém, ultimamente ela não tenho feito isso porque todos na Alemanha ficaram prejudicados com a pandemia do novo coronavírus, que fez pouco mais de 8 mil vítimas fatais no país até junho.
Uma curiosidade constante também do grande público é como os artistas plásticos estão fazendo para vender suas obras e expô-las. No caso de Helke, ela vendeu muitas peças depois de cadastrar os quadros em um site voltado ao comércio de obras de arte com a ajuda da sobrinha, e sobraram poucas. Além disso, durante a pandemia aconteceram inúmeros movimentos das pessoas para ajudarem os artistas, até porque estes vivem estritamente da oferta de suas obras e performances.
Ela cita que o cenário de apoio a produção e o incentivo à cultura alemã é extremamente vasto e existem milhões de oportunidades. O presidente Fran-Walter Steinmeier, eleito em 2017, por exemplo, investe em feiras, divulgações e dá um aparato muito forte para quem está começando. A pintora diz que se sentir incentivado é muito importante para o desenvolvimento de um artista.
A artista alemã, como todo mundo, sente muita falta do convívio social. “Antes, tudo estava funcionando normalmente. Eu ia para a praça, assistia as crianças brincarem, via os pássaros. Dortmund tem uma belíssima praça onde os turistas tiram fotos e se divertem muito, mas que hoje em dia tudo está triste, cinza e melancólico”, descreve.
À espera dos palcos
Se para artistas com um certo tempo de carreira e renome a situação já se mostra complexa, imagine para quem está dando os primeiros passos em seu ofício. Esse é o caso de Yanca Aguiar, que hoje vive no Rio de Janeiro em busca de melhores oportunidades de uma melhor formação em teatro e oportunidades de trabalho.
Segundo dados do G1, o fechamento dos teatros em São Paulo e Rio de Janeiro nesta quarentena acarretou no desemprego de 12 mil profissionais do setor. A estimativa da Associação dos Produtores de Teatro (APTR) é que a pandemia do coronavírus tenha interrompido cerca de 350 peças. Ao menos 70% dos espetáculos não tinham apoio de patrocinadores e sobreviviam apenas da bilheteria.
Yanca foi tranquila nas críticas a como o governo brasileiro tem lidado com a arte durante o período da pandemia no país. "Tendo em vista o momento que estamos passando, e o curto período em que Regina Duarte esteve na secretaria de cultura, não temos como tirar base sobre o trabalho dela, pois na área cultural, desde grandes emissoras até mesmo canais de streaming, desde o artista renomado ao artista desconhecido ou seja a classe artística de modo geral, vem enfrentando desde o início da pandemia um enorme desafio cultural.” Ela complementa, que vendo por esse prisma, seria irresponsável avaliar o trabalho de Regina na secretaria de cultura durante sua permanência, sabendo que a mesma não teve acesso a recursos, devido aos próprios cortes do governo.
A jovem atriz enxerga a situação das grandes empresas, que investem em artistas já renomados, de forma diferente. Ela tem plena convicção que isso sempre aconteceu e não vai mudar agora. “Infelizmente os artistas novos estão a mercê disso, e parece impossível reverter essa situação”, lamenta. Apesar dos pesares, na última semana de maio o parlamento aprovou uma lei batizada de “Aldir Blanc”, que permite que artistas, produtores, técnicos e trabalhadores que atuam na cadeia de produção do setor cultural tenham direito a uma renda emergencial de R$ 600 por três meses. Porém, há certo temor com a possibilidade do Presidente Jair Bolsonaro vetar a lei. No geral, o clima é de desconfiança dos artistas com as ações do governo (e vice-versa).
Existem explicações plausíveis para entender essa oposição do governo e de seus seguidores para com os artistas, mas para isso precisamos “viajar” um pouco. Sigmund Freud, por exemplo, fala uma coisa muito interessante sobre a negação: omitir os fatos é uma espécie de utopia. Uma ilusão. Não é um mero erro de interpretação: um sonho é uma compreensão da realidade fundada no querer da pessoa. Ou seja, um indivíduo interpreta a realidade a partir do que ele quer, começando pelo desejo dele, e por isso é difícil de mostrar a ele o real, mais forte que as evidências que contrariam os fatos. É justamente essa dificuldade que os artistas enfrentam para deixar clara a sua importância a um projeto político que, via de regra, coloca-se contra a pluralidade, ao passo que engaja tantos seguidores.
Puxando a discussão para o cenário dos artistas no Brasil, os seguidores do presidente praticamente mudaram o papel dos intelectuais dentro da sociedade brasileira. A ojeriza aos trabalhadores da cultura e da ciência levou funcionários da arte a serem hostilizados em lugares públicos, além da perda gradual de espaços de atuação profissional. Para os bolsonaristas, os artistas fazem parte de uma espécie de elite liberal/progressista em que eles absolutamente não se reconhecem. Agora, os grupos que se posicionam contra o saber imaginam: “Chegou a nossa vez!”.
Como resultado disso, vivemos um momento de reacionarismo entrincheirado em uma identidade que faz enorme oposição a esse grupo social e político, ao qual pertencem os artistas, intelectuais e cientistas. Mas, como já diz a música de Arnaldo Antunes, “o real resiste”, e são justamente os frutos da produção cultural que nos mantêm reflexivos, entretidos, esperançosos e ligados à lembrança da “vida normal” de antes da pandemia, para a qual tantos almejam retornar.