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A redação esvaziou, e agora?

Crônica de Luiza Queiroz 
Aluna do 7º período do curso de Jornalismo da Faculdade Martha Falcão
Publicado em 03 de junho de 2020
Foto: Acervo pessoal / Luiza Queiroz
Percebeu que o clima ficou mais chuvoso na quarentena em Manaus? É impressão minha ou aquele “sol para casa um” ficava mais forte com o calor humano? Agora, nada de jornalista reclamando do calor, nem precisa mais ligar todos os ares-condicionados da redação. Eles deram lugar às janelas abertas e à brisa fresca de seis da manhã no início do expediente, minha única companhia no trabalho durante a pandemia. 

Parece até um eterno feriado, com o trânsito de uma das maiores avenidas de Manaus mais que tranquilo. O percurso até a empresa, que antes levava de quinze a vinte minutos, hoje é concluído em dez. Consigo até comprar pão quentinho na padaria do bairro sem filas no caixa.  

O estacionamento da firma, que já era vazio no horário de chegada, agora está deserto. Na recepção, uma edição do jornal com os números de infectados estampados na capa está pronta para ser levada por mim para o andar superior. A moça que preparava o café tirou 15 dias de folga, ouvi comentários no elevador. Ela não foi a única. A Dona Rosa, aquela que colocava ordem na bagunça do segundo andar, também foi para casa. Grupo de risco, ouvi boatos no banheiro. 

Com os raros dias frios passando, os casos só aumentavam, e o medo também. A única alternativa foi mandar todo mundo para casa, o tal do home office. Menos a TV. A TV ficou, ou melhor, sete pessoas ficaram para colocar no ar três jornais por dia. Afinal, quem iria informar o aumento diário de infectados, ou o número de recuperados, além das medidas de prevenção?

Na primeira semana, mais um foi pra casa, suspeita quase confirmada. Depois foram mais duas cadeiras vazias. Já era possível ouvir até o barulho da rádio do outro lado do pavilhão. Como única ocupante da sala, decretei que a janela ficaria aberta, medida de prevenção para arejar o ambiente, e o ar-condicionado, desligado. Certeza que o editor iria reclamar, ele gritava até pelos erros de acentuação, mas agora ele só digita em capslok e manda figurinhas agressivas, e eu continuo entendendo o recado. 

Depois da gradual desocupação do espaço, dispensa dos membros do grupo de risco e, claro, das janelas abertas, vieram as máscaras. Uso obrigatório, com cada estampa diferente que ajuda a identificar quem é quem, já que ninguém tem mais rosto. Da portaria, até as ilhas de edição, todos mascarados. As estampas variadas vão do mais simples até os modelos mais diversificados, como os de flores rosa neon, que caíam bem na moça da recepção. O operador de áudio foi relutante, usava sempre branco ou preto. Já a única repórter sobrevivente destacava as charmosas cores e animações no rosto. 

Até o apresentador do jornal matinal, que passou a ficar à frente todos os noticiários da casa após a confirmação de coronavírus de outro, está usando, mesmo que de forma discreta, uma máscara de cor neutra. Arriscaria falar que ele tem grande preferência por tons pastéis.  

Com apenas duas pessoas na redação, o café sobra, coisa rara de se acontecer. Os computadores continuavam ligados, com sinais de movimentação, o tal do acesso remoto. Já ouviu falar que, em redes de televisão, sempre tem uma alma penada circulando? Fontes anônimas dizem que as altas antenas podem atrair os espíritos. Se é real, eu não sei. Mas que a redação de jornalismo ficou fantasmagórica desde o início da pandemia, isso ficou. 
Com as cadeiras vazias ao redor, arrisco algumas dancinhas discretas quando ouço música alta nos fones de ouvido. Converso sozinha, converso com o computador, converso até com a nuvem passageira carregada de chuva. Meu psicólogo virtual indicou ligar a TV para não me sentir tão só. 

Não fui a única a virar a paranoica do “alquingel”. Compartilho o mesmo hábito com o Wagner, técnico de informática da empresa, que também está em home office, mas sempre precisa aparecer na redação para socorrer os sobreviventes com eventuais problemas de conexão. Ele comprou um spray, parecido com aqueles usados nos salões de beleza, para borrifar álcool em quem se aproximar. O meu é discreto, pequeno, mas sempre em mãos para limpar tudo o que pego. São tantos usos que fico me perguntando se contraí o vírus do Transtorno Obsessivo-Compulsivo por limpeza.

É por isso que, quando o relógio marca a hora do almoço (e a minha hora de voltar para casa), fico com muito medo. E se eu contrair o novo coronavírus? E se eu infectar quem mora comigo? E se eu não tomei tanto cuidado? Infelizmente, o trabalho essencial deixa algumas paranoias na cabeça. Arrumo a bancada, fecho algumas janelas e deixo tudo pronto para a próxima equipe, que também está reduzida. No caminho até o elevador, passo pelo refeitório, onde vejo o seo Mariozinho, editor do jornal impresso, almoçando sozinho. Ele foi o único do grupo que não se adaptou ao trabalho em casa e continuou vindo para a redação. Me pergunto se está tomando os devidos cuidados. 

Um motorista que me dá carona de todos os dias já está esperando no estacionamento vazio, ansioso para saber como consegui enfrentar mais um dia inusitado de trabalho solitário. No caminho até o carro, vejo o quanto as coisas ao meu redor mudaram. Não só o clima ou a quantidade de pessoas, mas também os sentimentos. Sempre me despeço sorrindo com os olhos, por conta da máscara, torcendo para estar de volta no dia seguinte, na brisa fresca da redação iluminada pelo sol da manhã. 
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