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60 dias e seguimos não tão firmes e muito menos fortes

Crônica de Lucas Bandeira
Estudante do 7º período do curso de Jornalismo da Faculdade Martha Falcão
Publicado em 04 de junho de 2020
Foto: Notícias ao Minuto
No momento, parece que eu não tenho muito mais o que fazer além de escrever, ver o tempo passar e, às vezes, ir e vir do supermercado. O que antes me divertia, como desenhar e jogar, se tornou tedioso. Depois de 60 dias, comecei a limpar e reorganizar todo o meu dia a dia, varrendo tudo que fosse secundário e focando nas minhas obrigações.

Com toda essa situação de quarentena e home office, acabei obcecado em estabelecer um cronograma mais saudável para os meus dias: assim, faço minhas tarefas da faculdade, da casa e ainda sobra tempo para meus hobbies, pois percebi que seria pior não atentar a eles. Seria ótimo se esse plano B tivesse dado realmente certo, mas não foi o caso. Admito que a situação parece cada vez pior.

Uma das poucas coisas que eu realmente vejo funcionar nessa programação é a ida ao supermercado, por motivos óbvios: preciso comer. Assim, o que me restou de contato com o mundo exterior, por enquanto, são alguns quilômetros entre minha casa e o mercado que eu tiro para lembrar dos últimos itens das compras e deixar meus pensamentos livres.

No meio desse caminho parecem surgir novas versões de mim, uma mais diferente da outra, parecendo que são na verdade pessoas diferentes. A minha versão “jornalista tarimbado”, por exemplo, foca em cada pessoa na rua, às vezes até em inglês: o que comem? O que fazem? How do they live? Talvez eu precise de um psiquiatra.

Essas versões de mim discutem nessas ocasiões em que eu deixo meus pensamentos fluírem livremente a ponto de eu começar a murmurar e gesticular como se fosse uma conversa normal com outra pessoa. Ultimamente, são assuntos sobre a pandemia e algumas razões fúteis das pessoas estarem furando a quarentena e se aglomerando, e isso segue até uma terceira voz interromper e falar algo extremamente importante: “acabou o café! Não da para sobreviver a uma pandemia sem café!”. Concordo com ela.

Vez ou outra essas vozes até respondem por mim, a que fala em inglês principalmente. Já perdi a conta de quantas perguntas feitas pelos meus pais eu respondi em inglês. Sempre são perguntas comuns do dia a dia, como “já deu a ração para os cachorros?”, e ela responde “Of course!”. Eles não entendem o que eu digo, pois não estudaram essa língua, mas aquela versão não liga. 

Prestes a chegar ao mercado, é nítida a diferença entre o antes e o depois do isolamento social. Tudo está mais vazio, e mesmo com aquelas pessoas que não respeitam a quarentena, em alguns trechos do percurso parece uma cidade fantasma. Mas nesse momento me dou conta de que estou indo para um local possivelmente lotado e começo a ficar inquieto.

Todas das vozes nesse momento aparentemente se unem em uma só. Listam os itens que eu preciso, mas não os da lista do mercado e sim os necessários para minha segurança: máscara, álcool em gel, luvas e uma distância de um metro e meio das outras pessoas. Minha única missão é pegar os suprimentos necessários e sair o mais rápido possível. Meu aliado, o frasco de álcool em gel guardado no bolso.

Já usando minha máscara desde o momento em que saí de casa, entrei no mercado. Haviam pessoas com e sem máscaras, muitas fazendo as compras sozinhas, talvez para seus familiares que esperam em casa, e famílias inteiras pondo crianças em risco e causando aglomeração. Os fiscais e trabalhadores do estabelecimento tentavam fazer o seu melhor para conscientizar os clientes, mas parte deles parecia irredutível. Nesse ponto, a ansiedade começou a pesar sobre meus ombros.

Cada corredor fazia uma sinfonia épica diferente tocar em minha mente, como se uma orquestra inteira estivesse acompanhando meus passos, apesar de fazer compras no mercado ser uma das atividades mais simples e monótonas do nosso cotidiano. Era preciso cautela para me manter afastado dos consumidores descuidados, com certeza eles não dariam importância para a distância mínima. Por um momento, a ansiedade desapareceu por causa de uma voz alta e confiante invadindo meus pensamentos: “É você quem está certo, recomponha-se!”. 

Após muitos corredores e olhares que me julgavam, enfim missão concluída, já era hora de deixar aquele lugar. Passei o álcool em gel nas mãos eu tracei meu caminho com destino à minha casa. A tranquilidade reinava, tudo o que eu poderia fazer seria deixar mais uma vez meus pensamentos fluírem e levantarem mais questões sobre os próximos dias, como os hobbies que com certeza não praticaria, por exemplo. 

Os mesmos pensamentos da ida se tornavam os da volta. Eu estava preso num looping, mas ao menos aquela missão suicida acabou. Tudo o que precisaria fazer agora seria chegar em casa e higienizar as compras. O isolamento social em si, somado às notícias muitas vezes negativas, estão deixando tudo mais difícil aos poucos, criando cada vez mais vozes na minha cabeça. Ao menos ainda tenho contato direto com meus familiares para preservar a sanidade que me resta e as chamadas de vídeo para matar as saudades dos amigos, embora às vezes eu não tenha certeza se sou eu ou alguma dessas vozes que conversam com eles.
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