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A do cabelo rosa

Crônica de Marcella Ladislau 
Estudante do 7º período do curso de Jornalismo da Faculdade Martha Falcão
Publicado em 10 de junho de 2020
Foto: Pinterest
Nesse momento, a professora se estendeu e eu tenho exatos 12 minutos para sair da sala, descer as escadas correndo, fingir normalidade no corredor até a área do lanche da árvore onde tem gente reunida tocando violão - sim, todo lugar do mundo tem um cara tocando Legião Urbana com um violão, lá na faculdade tem três caras, cada um com um violão, tocando louvor -, e passar por eles até a catraca de saída, torcendo pra que a minha digital que libera a passagem funcione rápido e eu tenha mais algum tempinho antes do 217 passar.

Eu tava correndo pra chegar na parada quando eu senti um barulho do meu lado. Era o ônibus, encostando um pouco antes do local correto. “Entra, menina da Redenção do cabelo rosa”, disse a voz lá dentro. Tenho que admitir que eu não ando muito por aí com cara de simpática, mas ter o cabelo rosa me salvou de ficar mais uma hora na parada com o risco de perder minhas coisas pra algum assaltante doidão ou a minha dignidade para alguém com ideias piores que a dele. Dei um suspiro e subi, aliviada. “Valeu, motora!”. Essas pequenas coisas e eu já ganhei minha noite! 

Na catraca, eu observo quem tá atento pra descer no Terminal 2 e me encosto por perto, pra não precisar correr tanto quando o ônibus esvaziar. Eu gosto de sentar especificamente nos bancos duplos e altos, na parte da janela, pra que quem passe no corredor não fique se esfregando no meu braço e eu consiga tirar um cochilo de leve, agarrada na mochila. Apesar da cabeça bater algumas vezes na janela, pelo menos tem um apoio, né, e eu consigo um canto pra esconder minha cara quando o ônibus tá lotado e me acordo assustada com as freadas do motorista. 

Sentar na janela também dá mais alguns privilégios, tipo pegar um ventinho na cara mesmo quando está todo mundo igual sardinha enlatada dentro do busão. Se cair uma chuva, o lado positivo é que dá pra tentar respirar algum fragmento de ar puro em alguma fresta do vidro mal colocado. O importante nisso tudo é evitar encostar muito os braços na parede do ônibus, ou você pode se surpreender com alguma baratinha subindo na sua roupa. Achou nojento? Bom, é um pouco menos nojento do que se algum cara se esfregar em você quando você só tá tentando chegar em casa depois de um dia exaustivo. 

Esses caras infelizmente são bem comuns na minha rotina. Acho que desde os 11 anos, quando passei por isso a primeira vez e cheguei em casa chorando, percebi que teria que lidar com essa situação de qualquer jeito - às vezes o lance de ficar sentada nem é pelo cansaço, mas pra evitar ficar no corredor e passar por isso de novo. Nem sempre sentar também vai te deixar escapar desses tipos, então eu adotei a cara de raiva pra tentar fazer eles manterem distância, e vez ou outra funciona. E se a cara fechada não funcionar? Bom, ameaças, gritos e escândalo podem ser um bônus. 

Que bom que hoje não é um dia dessas figuras ficarem por perto, e uma senhorinha sentou do meu lado. Acho que ela vai dormir o caminho inteiro e já tô triste de ter que acordá-la na hora de eu descer. Pelo menos ela mora perto de casa e eu não preciso descer na parada de ônibus sozinha. Isso me lembrou que estamos perto de passar a parada do Plaza, e talvez o cara que estudou na mesma escola que eu suba no 217. Eu finjo todas as vezes que não tenho expectativa que ele suba, mas não consigo tirar isso da cabeça quando eu passo por aqui, o que é engraçado, porque sendo honesta, eu nem conheço ele.

Eu acho meio abestado da minha parte, porque eu nunca falei com ele na vida, nem na escola a gente tinha contato, mas algum dia quando subi no ônibus e sentei apressada, uma mão tatuada se apoiou na minha frente quando o motorista freiou. Era um desenho escuro, e parecia muito similar a alguma arte de um filme que eu vi. Fiquei nervosa porque lembrei de um ex com quem não queria contato na época. Olhei pra cara dele e imediatamente fiquei sem reação. Que diabos eu ia dizer? 

 - Oi, a gente nunca se falou na vida, eu sou uma completa estranha e talvez você não lembre de mim porque eu era muito feia e cheia de espinhas naquela época. Não que eu esteja maravilhosamente irreconhecível hoje, mas certo, dá pra admitir que o tempo me fez bem. Parece que fez bem pra você também, porque eu nunca tinha notado que os seus olhos são realmente pretos, eu nunca os tinha encarado, meu deus que vergonha, o que eu tô fazendo? Desculpa! 

É, eu poderia ter feito isso ou ter feito exatamente o que eu fiz: fiquei nervosa e troquei de lugar. E agora toda vez que eu o via no ônibus, não conseguia nem olhar pra porra dos olhos dele. Não sei se esse dia foi o pior, ou se o pior foi o dia que eu cochilei no ônibus e ele tava no corredor em pé, bem na minha frente, com toda certeza pensando: nossa, que sexy a cara dela de cansada, babando e dormindo em público. Bom, hoje ele sentou na frente, perto do motorista, e eu tenho que me preocupar mais com a parte em que eu corro da parada de ônibus até a minha rua antes que alguma moto com dois caras passe e leve o resto de dignidade que eu ainda tenho depois de lembrar disso. 

Falta pouco pra descer, mas não antes da atração da noite. Óbvio que ia ter alguma confusão no busão. Uma mulher queria descer e tinha uma senhora apoiada na saída.

- Senhora?
- …
- Senhora? Com licença!
- Que é?
- Amada, eu quero descer!
- Mas o ônibus não parou ainda pra tu descer!
- E tu virou porteira do 217 agora?
- Iiih, tu quer fazer show é? Ignorante!

A mulher desceu, a velha também, e foi cada uma pra um lado. Todo mundo ficou se olhando, dando aquela risadinha de canto. E eu só consigo pensar se ao chegar em casa eu vou fazer algo pra jantar ou fingir demência pro meu bucho que tá gritando de fome e ter um pouquinho mais de tempo pra dormir antes de começar tudo de novo. 
Tô chegando na minha parada, e ainda bem que dessa vez eu não dormi. Já puxei as chaves e escondi no bolso - vai que alguém se aproxima demais e eu preciso fazer algo sobre isso né? A parte boa é que uma vizinha amiga da minha mãe veio nesse horário pra casa hoje, e o marido dela ficou esperando a gente da esquina. Acho que vi o carinha me olhando pela janela quando a gente desceu, mas não tenho certeza disso porque aquela velhinha que tava dormindo desceu desnorteada na minha frente.

Não tinha ninguém no campinho hoje, e a luz do mini shopping que fica na frente da parada estava queimada, então a gente saiu meio que correndo com aquele medo que todo manauara tem: dois caras numa moto. Chegando na nossa rua, ficou tudo bem, afinal quem tem vira-lata galeroso que fica na esquina e aquele guardinha que passa apitando toda noite é mais protegido que carro blindado de político. Talvez eu perca um tempo de sono tentando fazer algo pra comer, já que o frango frito da vizinha tá cheirando aqui na porta de casa. A parte boa é que além de ser mais um dia que eu consigo chegar viva em casa, eu acabei de lembrar que hoje é quinta e tem carona pro barzinho depois da aula amanhã.
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